terça-feira, 6 de setembro de 2016

Aquarius -- Belíssimo exemplar da sétima arte

"O dever das pessoas de bem (sic) é boicotar Aquarius" (Reinaldo Azevedo, revista Veja). Bobagem! O dever das pessoas de bem é fazer o que elas quiserem - evidentemente, dentro da legalidade. As orientações políticas são convicções de cunho pessoal, tanto em relação a quem faz o filme quanto em relação ao público. O momento de efervescência política no Brasil propicia debates acalorados e (lamentáveis) inimizades explosivas, porém, o presente texto é uma crítica cinematográfica, razão pela qual qualquer possível análise política do contexto do filme será descartada. A celeuma política é intensa e não são poucas as pessoas que tentam encaminhar a exibição de "Aquarius" em trilhos diversos dos culturais. Isso tudo, aqui, é irrelevante.

Em termos cinematográficos, AQUARIUS é um filme muito bom e merecedor dos elogios que recebe dos profissionais especializados - aqueles que também se despem das convicções políticas pessoais. Talvez seja até mesmo o melhor brasileiro da safra atual, eventualmente merecendo a indicação governamental para disputar uma vaga entre os indicados ao Oscar 2017 (melhor filme estrangeiro) - em termos procedimentais, o governo do país (1) cria uma comissão, aprovada pela Academia de Ciências e Artes Cinematográficas de Hollywood, que (2) indicará um filme nacional para a Academia (a partir da candidatura dos produtores), e esta (3) escolherá quais os filmes que concorrerão ao prêmio, os chamados indicados. Isto é, a indicação do governo é distinta da indicação da Academia (é uma indicação à indicação), esta (da Academia, e não da comissão nacional) é que é a importante em termos de marketing internacional. Ser o melhor brasileiro em uma temporada, contudo, não significa excelência. Indo além, "Aquarius" pode entrar no rol dos filmes brasileiros que entraram pela história, mas por razões externas à sua qualidade: a cinematografia pátria tem exemplares de melhor qualidade - podendo-se incluir, por exemplo, "Que Horas Ela Volta?". Em síntese, apesar de ser um filme muito bom, não está no top da cinematografia brasileira.

A sinopse está presente de maneira clara no trailer e é bem conhecida: Clara (Sônia Braga) é uma jornalista (especializada em crítica musical) e escritora aposentada que está satisfeita com a vida pacata em seu prédio Aquarius, em frente à praia da Boa Viagem (Recife). Sua felicidade começa a ser abalada quando a construtora Bonfim (e o nome não é esse por acaso) quer adquirir o seu apartamento para a construção de um novo empreendimento. O responsável é um rapaz jovem e determinado chamado Diego (Humberto Carrão). Clara não quer se desfazer do imóvel, porém, é a única moradora que ainda vive no edifício (todos os outros efetuaram a venda). É assim que ela compra uma briga de consequências incógnitas.

De forma genérica, vários os caracteres técnicos bem conduzidos. O primeiro deles é referente à impecável direção de arte, que é mais rica no início do longa, perdendo um pouco de força no decorrer da trama. Isso porque o começo da película se passa em 1980 (inclusive, nessa parte, Clara é interpretada por Barbara Colen, e não Sônia Braga), o que permite, por exemplo, um figurino marcante. É interessante também visualizar os carros da época, não sendo exagerado afirmar que a direção, sabedora da boa oportunidade de situar o espectador, investe na exposição em demasia de vários "carangos" situados em frente ao edifício Aquarius (isto é, aquela quantidade de veículos no início é proposital, para fins de contextualização temporal). Quando a fita muda para o tempo presente, o vestuário continua chamando a atenção: o vilão Diego com roupas de "mauricinho", dentro do perfil proposto, com a predominância de cores frias (azul claro e cinza) para remeter-se à sua frieza; a protagonista, majoritariamente com roupas de praia, inclusive um maiô liso e de cor escura, indicando a sua sobriedade; a empregada de Clara sempre usando um avental - e assim por diante. A atenção aos detalhes se faz presente quando Clara coloca uma viseira para ir à pria, da mesma forma que o apartamento conta com um belo pôster do clássico "Barry Lyndon" (premiado filme de Kubrick) - nesse último caso, há referência ao espírito saudosista da protagonista, um dos grandes pilares do filme. Até mesmo o penteado tem importância: nos anos 1980, Clara usa um corte estilo Elis Regina (nome dado pelo seu marido), o que não tarda para receber uma fundamentação lógica; depois, a Clara da Sônia Braga exibe fios longos e bem cuidados, o que também faz sentido no seu arco dramático. Uma última observação sensorial: a trilha sonora é tão maravilhosa que o filme se justifica também por ela, certamente a melhor nacional em 2016. Evidentemente, existem outras virtudes, mas as músicas escolhidas - e corretamente implantadas - são de difícil superação na sétima arte. Melhor nem mencionar nomes para não afetar a experiência.

Nesse sentido, "Aquarius" é o filme da Clara da Sônia Braga, o que significa dizer (1) que a personagem lhe é essencial (por consequência, nos raros momentos de sua ausência, há algum prejuízo) e (2) que a atriz carrega o filme praticamente sozinha, atraindo para si a atenção e dando conta da tarefa. Cabe esmiuçar a frase, pois é um dos pilares do longa. Clara é uma personagem fascinante. Embora exista um recorte temporal bem delineado, sua personalidade é facilmente conhecida e agrada rapidamente pela autenticidade, encurtando o caminho para a identificação cinematográfica secundária. Sua construção é tão bem feita que a naturalidade com que ela fica conhecida pelo público surpreende. A protagonista tem um pretérito sofrido em razão de uma séria doença, que deixou cicatrizes (não apenas físicas) e que reverbera nas mais diversas situações (afetivas e sexuais, a título exemplificativo). Seu drama biológico a moldou e deixou marcas bem profundas. Não obstante, Clara não se vitimiza, ela não é melancólica - ao revés, já nos anos 1980 ela era "prafrentex", não se incomodando com um casal empolgado em um beijo lascivo na penumbra de uma escada desocupada. E não por outro razão ela ironiza a cunhada, que questiona ao marido se ele a libera para confraternizar com outras mulheres na sua ausência. É bem visível que ela não é conservadora em relação a sexo e sexualidade, e que isso não fica apenas no discurso. Se "Aquarius" tem algo mais fascinante que a sua protagonista é a magnífica atuação de Sônia Braga ao encarnar o papel. É evidente que os momentos mais extremos se sobressaem, como na cena em que Clara discute com sua filha ou quando se irrita e discute de forma mais ríspida com Diego. Entretanto, em momentos mais sutis a atriz também é magistral: merece um olhar especial o sorriso dado ao visualizar a festa no apartamento superior, a confissão do estado de ressaca e a reação ao ouvir a música escolhida pela namorada do sobrinho, dentre diversos outros momentos que poderiam ser destacados. Seria injusto deixar de citar o principal antagonista: Humberto Carrão se esforça para tornar Diego um inimigo interessante, mas eles não chegam ao nível de Clara e Sônia Braga. Carrão injeta em Diego uma simpatia e uma paciência que se tornam irritantes, a protagonista acerta ao definir seu estilo como "passivo-agressivo" (e ele também tem razão, da sua maneira, ao definir a si mesmo como "do tipo focado"). Bem instruído com o "curso de business" e com um currículo provavelmente invejável, falta-lhe "formação humana e caráter" (novamente, palavras de Clara), vez que ele é capaz de artimanhas ocultas para atingir seus objetivos. Diego morde escondido e assopra quando visto. Surpresa positiva (para um ator pouco experiente), Carrão capta bem esse perfil. Todavia, Diego é um antagonista frágil diante de uma protagonista tão forte, e isso prejudica a narrativa.

É aqui que entra uma questão central: do ponto de vista narratológico, o longa tem deficiências consideráveis. Um roteiro se sustenta, em geral (atenção: trata-se de uma enorme simplificação com escopo didático, não a exposição de um cânone), por três pilares: argumento, construção de personagens e narrativa. O argumento é bem razoável, apesar de não possuir nada de extraordinário (o que significa, a priori, que é a narrativa que precisa surpreender). A construção das personagens também - devendo ser reiterada a ressalva quanto ao antagonista, aquém do brilho sensacional da protagonista, adicionada à concernente à quase insignificância das coadjuvantes (o que é aceitável por força do monólogo cênico de Clara). Já a narrativa vive de bons (maioria) e maus (minoria) momentos. A divisão em capítulos tem função quase pedagógica, o problema é que há uma sensação forte de inércia e preguiça para fazer o plot progredir (sair do lugar), tornando-se uma história rocambolesca e quase enfadonha, ao menos nos últimos 40 minutos. A conclusão é que falta contundência ao filme, que vive de espasmos da metade para a frente - ignorado o desfecho fenomenal. Quando tudo caminha para o tédio, há uma cena de maior dramaticidade. A abordagem das temáticas é acertada - especulação imobiliária (novo empreendimento), memória afetiva (o móvel da Tia Lúcia), sarcasmo (o nome da construtora, a entrevista de Clara sobre as novas mídias etc.), envelhecimento, tudo tem profundidade e é pertinente, sendo, porém, afetado com a diluição ocasionada pela extensão exagerada do filme (com reflexos também na direção). São muitas "gorduras" em um roteiro que poderia ser bem melhor.

Coerente em um sentido negativo, a direção toma exatamente o mesmo rumo: são vários os acertos, mas é também enorme a "gordura". Clara se alongando, ação de um traficante, exercícios na praia, alimentando os gatos... tantos momentos dispensáveis (em especial, mas não apenas, no final) que fizeram com que o filme tenha uma duração bem maior que o necessário. Era possível retirar, sem exagero, meia hora. O diretor Kléber Mendonça Filho, do ponto de vista holístico, chega quase à excelência - prova da sua qualidade é a belíssima elipse da primeira parte. Ser excelente também envolve o "feijão com arroz", logo, diálogos de montagem pingue-pongue são plausíveis. Há um exagero desconfortável na exposição da intimidade, que alcança o limite do aceitável. Muita nudez, sexo explícito, genitálias expostas (inclusive pênis ereto, e mais de um), orgia, a limpeza de um bebê para trocar a fralda... chega a ser até cansativo e soa como sensacionalismo para chocar e surpreender o espectador. Não soa como realismo porque a montagem com um grande número de cortes, em tese, afasta tal raciocínio. Em tese, tudo isso está lá para soar natural, dentro da atmosfera diegética e do cotidiano da protagonista, alterado com a briga com a construtora. Mendonça Filho também insere planos despropositados, como panorâmicas sem sentido, zoom in desconexo do momento, vários planos de fechamento de porta (de semântica nula na fita), pesadelos eventualmente ininteligíveis... o trabalho só não fica prejudicado porque as cenas mais dinâmicas compensam os momentos falhos, especialmente no ápice do drama. A tentativa de suspense merece ser ignorada - exceto em relação ao desfecho, que, reitera-se, é fenomenal.

De todo o exposto, conclui-se que "Aquarius" é um belíssimo exemplar da sétima arte, que compreende plenamente o significado que possui na área. No mínimo, representa o ímpeto de aprimoramento do cinema nacional, historicamente tímido (para falar o mínimo). Ignorando as questões políticas, alheias ao universo cinematográfico, "Aquarius" dá azo à esperança de solidificação da arte no Brasil. Existem bons profissionais, o exemplo está dado.

Nenhum comentário:

Postar um comentário