terça-feira, 13 de setembro de 2016

Últimos Dias no Deserto -- Era possível inovar muito mais

Com o intuito de se preparar para concretizar seu destino, Jesus passa um período no deserto, onde é tentado pelo Diabo. A Bíblia traz o relato em apenas onze versículos, no quarto capítulo do livro de Mateus, no Novo Testamento - ou seja, é bastante lacônica. A brevidade bíblica é a porta de entrada para o plot de ÚLTIMOS DIAS NO DESERTO, filme gospel um pouco acima da média (em um subgênero nivelado por baixo).

Verifica-se uma elogiável criatividade do roteiro ao preencher uma lacuna do texto bíblico, saindo da esfera do lugar-comum dos filmes da mitologia cristã. O vácuo deixado pelo livro é um espaço aberto para o exercício da criatividade, pois o argumento é o período em que Jesus passa no deserto, longe da civilização, mas tentado pelo Diabo. Trata-se de uma premissa bastante ampla, permitindo ao roteirista que explore as incontáveis possibilidades e concretize alguma que se encaixe na proposta. Em princípio, seriam duas personagens, porém, Jesus decide ajudar uma família que passa por um momento conturbado - (a) um adolescente que sonha com um futuro diverso do planejado pelo pai, (b) um homem prestes a perder a segunda esposa e com um relacionamento ruim com o filho e (c) uma mulher com saúde debilitada e provavelmente às vésperas da morte, abandonando marido e filho.

Com muita inteligência, o mesmo ator divide-se entre o papel de Jesus e do Diabo. O óbvio seria escalar dois atores diferentes, contudo, colocar o mesmo ator é uma opção perspicaz da direção, permitindo múltiplas interpretações. Sendo o objetivo do Diabo irritar e tentar Jesus, qual maneira seria melhor que usar a sua imagem? Certamente, este não ficaria contente ao ver aquele, símbolo da maldade, adotando o seu visual. A construção das duas personagens é dotada de riqueza: Jesus é retratado com bastante humanidade, encontrando-se mais próximo do universo dos homens que do divino - tanto é assim que, por diversas vezes, pede para conversar com Deus, não obtendo resposta (sua curiosidade sobre o Divino  é tão torturante que alcança o próprio antagonista, que, em tese, teria mais "conhecimento de causa") -, ainda que não se afaste completamente da sabedoria que lhe é peculiar (ensinando que "a mentira machuca também a pessoa que conta"); o Demônio tem um perfil coerente, usando todos os artifícios possíveis (mudando de forma e simulando a voz) e de muito sarcasmo e mentira para provocar o protagonista. Com maquiagem e penteado bem elaborados (inclusive para atenuar a estética caucasiana do ator), Ewan McGregor faz uma ótima interpretação dos papéis antagônicos: um herói cheio de dúvidas, inseguro e vacilante, mas com valores bem estabelecidos e fiel a eles; e um vilão que se diverte com o próprio sarcasmo (zênite na seguinte fala: "Quanta raiva! Você é mesmo filho do seu pai...") e com a própria maldade ao incomodar a jornada de Jesus. O que o ator escancara se torna palpável, em especial a insegurança (ou dúvida) de um e o sarcasmo provocativo do outro.

Os coadjuvantes são mais discretos. O adolescente é vivido por Tye Sheridan (o novo Ciclope, dos X-Men), que transita bem entre a puerícia e a maturidade. Seu pai coube a Ciarán Hinds, menos convincente que em outros papéis, confundindo frieza com truculência. É apenas no ápice da interação entre o pai e o filho que a subtrama consegue comover mais. Ayelet Zurer atua em papel menor como a mãe, com relevância muito inferior.

Rodrigo García faz um trabalho de direção razoável. Sem ousadia, o cineasta colombiano não foge do clichê da câmera em contraplongée voltada para o Sol, recurso básico do subgênero gospel usado para indicar a onipresença divina. Por outro lado, Jesus aparece mais no ponto de fuga da tela, indicando sua centralidade - eventualmente, aparecem planos mais interessantes, como aquele em que Jesus está próximo da câmera, sentado, e o Diabo em pé, mais distante. É um feijão-com-arroz que dá certo - o mesmo vale para a leve e instrumental trilha sonora. Emmanuel Lubezki, atual tricampeão do Oscar, foi o responsável pela belíssima fotografia de um deserto árido e opressor ao humano, isto é, um ambiente nada acolhedor. Também chama a atenção o esmero na edição de som, que ganha contornos realistas com os sons do vento.

A fita tem várias virtudes, porém, a vagueza do roteiro prejudica bastante o resultado final. Jesus tira galhos do seu cabelo e ri. Apesar de suja e corrupta, Jerusalém é "muito viva". Aparece uma estrela cadente no céu, que é admirada até mesmo pelo Diabo. Jesus tem seus momentos de diversão ingênua? As pessoas faziam de Jerusalém um lugar acolhedor? A beleza divina encanta até mesmo o Diabo? A arte permite inúmeras interpretações, entretanto, a película peca ao exagerar na amplitude das suas simbologias, o que se torna enfadonho. No final, quase nada acontece e pouco se extrai. Paradoxalmente, a subtrama da família se desenvolve mais que o aprimoramento pessoal do protagonista. Por fim, há um erro grosseiro no script, com um segundo final deslocado e completamente descartável.

Assim, a criatividade do argumento é a salvação de "Últimos Dias no Deserto", em termos de roteiro. Questões marginais se destacam eventualmente e há uma abordagem interessante da proposta. Porém, a experiência é positiva mais por aspectos técnicos que pela narrativa em si, que não abraça o potencial que tinha. Provavelmente, no meio cristão, será aprovado sem ressalvas. Diante da lacuna deixada pela Bíblia, era possível inovar muito mais.

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