segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Café Society -- Um dos melhores da temporada

Um filme medíocre de Woody Allen (como, por exemplo, o apenas razoável "Magia ao Luar") está bem acima da média do cinema. Não é esse o caso de CAFÉ SOCIETY, que se encontra no rol dos melhores filmes do diretor.

Inicialmente, todas as idiossincrasias (da filmografia) de Allen estão presentes, com qualidade superior aos mais recentes (como "Homem Irracional", que ancora na filosofia em detrimento do romance). Há um triângulo amoroso (tal qual "Vicky Cristina Barcelona"), personagens judeus e abordagem sarcástica sobre (como "Noivo Neurótico, Noiva Nervosa"), trilha sonora regada a um bom jazz, muita filosofia (atributos presente, provavelmente, em todos os longas de Allen) e assim por diante. Há muito de Woody Allen no novo filme de Woody Allen.

O protagonista de "Café Society" é Bobby, um jovem que se muda de Nova Iorque para começar uma vida nova em Hollywood. Lá, ele contaria com a ajuda do seu tio Phil (a pedido de sua mãe), rico e bem-sucedido na indústria do cinema em sua era de ouro. Como Phil não está muito disposto, designa a sua secretária Vonnie para a tarefa, por quem Bobby logo se apaixona. A paixão não se abala sequer quando ele descobre que Vonnie já namora alguém, surgindo um complexo triângulo amaroso além da imaginação do rapaz.

Na direção, Allen faz um trabalho maravilhoso, muito superior aos anteriores recentes. Apostando no realismo, são vários os planos longos e os planos-sequência, reduzindo os cortes. Para a imersão do espectador na diegese, sua mise-en-scène é sensacional: dentro dos cenários - até mesmo os fechados -, há espaço para a locomoção (e demais atividades necessárias) dos artistas (inclusive figurantes), e a câmera apenas acompanha os que são principais em cada cena, que agem como se não houvesse câmera. Isto é, a câmera se movimenta bastante dentro da diegese, com panorâmicas, travellings e zooms que, se implicam maior trabalho para o operador, também têm o benefício de enriquecer a filmagem como um todo. Poucos são os que se atrevem a insistir em tal metodologia, pois ela é cansativa, mesmo gerando enquadramentos exemplares. A parte referente à mise-en-scène é relativa à noção de artificialidade do aparato de filmagem e do fingimento de realidade da encenação: a câmera está lá ocasionalmente para registrar, mas tudo que a cerca continua acontecendo independentemente da sua presença. Infelizmente, nas cenas mais dramáticas, closes e montagem campo-contracampo prevalecem, uma convenção entediante das películas atuais. Porém, não chega a prejudicar "Café Society".

Outros aspectos técnicos também são esplendorosos. Os cenários belíssimos ajudam, mas a fotografia é precisa, como, por exemplo, no primeiro ato, apostando nos tons dourados que remetem à era de ouro de Hollywood, ou na cena em que Phil se encontra com sua amante, numa fotografia escura para destacar a clandestinidade do momento. A montagem tem alguma criatividade, em especial na pontuação, que não se reduz à fusão e aos fades. A sequência final, por exemplo, é simplesmente encantadora. Ainda, a direção de arte é impecável: vários momentos poderiam ser citados, mas exemplo elucidativo é uma refeição romântica entre Bobby e Vonnie, em que predomina a cor vermelha (paredes, toalhas de mesa etc.).

Apesar de tudo isso, o roteiro não está no mesmo nível de excelência, embora não seja ruim - pelo contrário, novamente, o medíocre de Woody Allen é superior à média. O texto tem uma inteligência fenomenal nas sutilezas: opiniões do próprio Allen ao participar com a narração voice over (o filósofo Leonard, por exemplo, é um "sujeito legal"), além, claro, de auxiliar na narrativa (embora a entonação local seja morna), citações filosóficas preciosas - um Marx aqui ("a religião é o ópio do povo"), um Sócretes ali ("uma vida sem reflexão não vale a pena ser vivida") - e falas irônicas e sagazes - contratar uma prostituta não é interessante pois "não há nada sexy em uma transação comercial", o cristianismo é tão ruim quanto o homicídio ("não sei o que é pior: assassino ou cristão"), e assim por diante. A cena da prostituta judia, por exemplo, é muito engraçada. Ou seja, o texto é rico em visão micro, atentando aos detalhes. Também a temática central tem abordagem inteligente: ainda que não seja inovador se debruçar sobre o "ter versus ser" (por exemplo, Phil tem tudo, como fama, sucesso e uma família aparentemente feliz, mas ele, como pessoa, não é realizado), um romance aparentemente clichê (em especial, triângulo amoroso) dá ensejo a reflexões pertinentes. Ora, um jovem que procura recomeçar a vida não é muito original... a criatividade passou longe da história pensada para o longa. Ademais, estruturalmente, a narrativa tem algumas falhas: não é inventiva como deveria ser, tornando-se um pouco previsível, não tem conflitos muito densos e o viés sério (drama e romance) não tem o charme que a comédia sarcástica possui. Ou seja, o enredo é genérico, mas merece atenção pelas minúcias que o script apresenta.

Por outro lado, a fita tem personagens que encantam. Phil Stern pode parecer um homem rico, arrogante e distante (em especial por destratar o sobrinho no início), mas não demora para se mostrar humano e repleto de falhas. A interpretação de Steve Carell corrobora com seu talento para o drama (presente também em "Foxcatcher", dentre outros), extraindo todo o potencial da personagem. Diversamente, Vonnie é vivida por Kristen Stewart, reconhecidamente uma atriz de talento reduzidíssimo, para dizer o mínimo. A filmagem a coloca em um pedestal, atribuindo à personagem quase um ar de santidade, como objeto de desejo de dois homens. A atriz foi chamada pelo físico (mais precisamente, pela beleza), para ser o símbolo de beleza que divide corações, todavia, nos momentos em que o exercício dramático lhe é exigido, ela comprova que não merecia o papel. Felizmente, Jesse Eisenberg está lá para salvá-la, encarnando com perfeição o (provável) alter-ego de Woody Allen, Bobby. O protagonista passa por uma transformação na sua vida, o espectador a percebe como um tranco pouco sutil em razão de uma elipse com a qual o roteiro não soube lidar bem (mais uma falha narrativa). De início, ele é romântico, ingênuo e bondoso - é fácil gostar de Bobby. Depois, mais independente e ególatra, mesmo quando se casa com a bela Veronica (Blake Lively, presente apenas pela beleza, sumindo quando conveniente), que lhe concede maior maturidade em razão da própria experiência de vida. Corey Stoll atua sério como o engraçado gângster Ben, rendendo ótimos momentos.

Em razão de tudo isso, "Café Society" é um dos melhores filmes da temporada (ao menos no mainstream), em especial pelo esplendor técnico, não tanto pela narrativa contada. Obrigatório para quem gosta de Woody Allen, provavelmente estará entre os indicados ao Oscar, em alguma categoria. E não será à toa.

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