terça-feira, 9 de agosto de 2016

Negócio das Arábias -- Razoável

Como se consegue prever do enredo genérico (o que é comum no cinema europeu, como no caso), NEGÓCIO DAS ARÁBIAS é uma verdadeira caixa de surpresas. Do ponto de vista da sinopse, o nome em inglês ("A Hologram for the King") é mais pertinente: o protagonista viaja a trabalho, dos EUA para a Arábia Saudita, com o objetivo de vender a um rei um holograma, pelo qual sua empresa de TI é responsável. O conflito - a dificuldade de achar conforto num país tão diferente, e, principalmente, de cumprir a missão (pois o rei nunca está para assistir à apresentação) - é básico e a sucessão de eventos costuma ser inusitada. O que pode ser bom - ou não.

Amparado no fenômeno cinematográfico relativo à hibridização dos gêneros, não é possível rotular o filme. Drama, comédia dramática, romance... tem um pouco de tudo. Normalmente isso é positivo, pois fincar as bases em um só terreno costuma ser um redutor frustrante. Nesse caso, significa um filme difuso de mensagem incerta. Isto é, qual é a "moral da história"? Não que não exista - e não será mencionada para que não haja spoiler nesta crítica -, mas não há pujança no quesito. Em termos práticos, o roteiro vive de erros e acertos, dando dois passos para a frente e um para trás. Tem alguma coragem com temas espinhosos como o terrorismo (que gera duas piadas, a segunda, em perspectiva diametralmente oposta à ótica estadunidense), mas abraça mesmo o abismo cultural entre EUA (país de origem do protagonista) e Arábia Saudita (seu novo lar provisório). É eficaz em alguns elementos para mencionar a globalização (o tablet logo no início, o motorista vendo as mesmas séries etc.), e tem engrenagens narrativas curiosas - em especial, o caroço nas costas. Merece destaque ainda a menção a Soren Kierkgaard na cena da festa, pois o filósofo entendia que o ser humano tem ampla liberdade (tão ampla que chega a ser incômoda, premissa essencialmente existencialista, corrente à qual ele se filiava), e o que se segue é justamente o exercício de tal liberdade. Todavia, não são poucas as pontas soltas: os flashbacks nebulosos (o divórcio, a posição dele na empresa, o real motivo de estar na Arábia Saudita - seria uma válvula de escape?) e as personagens não verticalizadas (em especial a filha e os colegas de trabalho) evitam que a trama seja digerida na íntegra.

Não se pode negar, porém, a sagacidade nas referências explícitas (além da já citada de Kierkgaard, outra, relativa a "Laurence da Arábia") e o delineio impecável da personalidade do protagonista - são essas as duas maiores virtudes do longa. Nesse sentido, o protagonista é Alan Clay, um homem de meia-idade que claramente tem problemas no seu cotidiano, tanto familiares (uma ex-mulher que continua tumultuando sua vida e uma filha que, apesar disso, parece estar do seu lado) quanto profissionais (um chefe (?) que questiona o seu mérito) e que encontra (não se sabe se propositalmente ou não) na Arábia Saudita um alívio temporário. Entretanto, Alan continua com problemas: os dos EUA permanecem, novas dificuldades no trabalho surgem e até mesmo um problema de saúde (que apenas parece receber atenção em demasia). Seu humor questionável é cativante, todavia, sem dúvida, é Tom Hanks que eleva o nível do filme a patamares mais altos. Sem Hanks, seria, sem dúvida, uma obra muito inferior. Não apenas pelo carisma do ator, nem somente pela sua habilidade inquestionável como ator, mas, em especial, pela sua capacidade invejável de injetar uma aura de "homem comum" a qualquer personagem - inclusive, facilitando a identificação cinematográfica secundária. Hanks brilha muito mais uma vez, sendo auxiliado por um elenco de apoio competente: a médica de Sarita Choudhury absorve os valores heterodoxos da personagem, respeitando as tradições do país, mas sem abrir mão da própria felicidade; Sidse Babett Knudsen convence como uma dinamarquesa bastante liberal, que aparentemente funcionará como "carta na manga" do plot, quando, na verdade, se revela pouco significativa, cabendo esta função à Dra. Zahra Hakem; e Alexander Black faz de Yousef um ótimo alívio cômico (que rende as melhores cenas de humor, que não são poucas). A participação de Ben Wishaw é quase imperceptível, de tão insignificante.

Tudo em bom nível, exceto Tom Tykwer, responsável por uma direção vacilante (e também pelo roteiro, mas baseado em livro de Dave Eggers). Há uma clara hesitação do ponto de vista narratológico, pois o rumo tomado pelo terceiro ato é tão distinto que se torna incômodo: transformar tudo em romance não é ruim, contudo, isso ocorre de forma brusca e quase não soa natural, não fosse o trabalho dos artistas envolvidos. Na verdade, o ritmo do terceiro ato é diverso do resto, dando à montagem maior estabilidade, que, porém, destoa de tudo que precede. Pode parecer paradoxal, mas a instabilidade que prevalece começa a acostumar. Os fatos acabam passando no limite da plausibilidade. A direção hesita tanto que o prólogo tem uma quebra da quarta parede que jamais se repete: remetendo a filmes como "A Grande Aposta" e "O Lobo de Wall Street" e parafraseando a música "Once in a Lifetime", a cena na verdade é um sonho que Alan tem dentro de um avião, dando a entender que o longa terá acidez ao abordar seus temas, o que não se verifica na prática. A metodologia desta cena não faz sentido também porque o sonho de Alan (num viés de realismo fantástico) não é constantemente reiterado - ou seja, são sonhos sem sentido. Como um todo, a película soa como um quebra-cabeças que não se encaixa perfeitamente, ao menos no que se refere ao tom da direção. Aliás, é preciso mencionar que a direção é sutil como uma marreta: o choque cultural de Alan no elevador (ao ser ignorado por jovens árabes entretidos com um jogo em um tablet) e os carros que o conduzem na empreitada (um, velho, com um motorista; outro, novo, que ele mesmo dirige; ambos representando o momentum na trama) são exemplos de como escancarar o que se pretende dizer. Isso tudo sem contar a insistência na piada da cadeira, um humor não muito engraçado e de significado duvidoso (seria a metáfora da tentativa frustrada?). O que deixa mais patente a ineficiência de Tykwer é uma cena de suspense em que Yousef conduz Alan por onde não deveria, na qual o suspense fica apenas na ideação, sem atmosfera nenhuma de expectativa.

O epílogo da presente crítica vai parecer incoerente, mas não é: "Negócio das Arábias" consegue ser razoável. Está muito longe das obras-primas das quais Hanks já participou, e também não é um filme com passagens inesquecíveis). Não obstante, ao expor fielmente uma realidade tão diferente da ocidental, traz um significativo acréscimo cultural ao mesmo tempo em que oferece entretenimento com momentos de romance e de comédia. Não é uma catarse cinematográfica, nem uma completa perda de tempo: é razoável.

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