quarta-feira, 3 de agosto de 2016

De Longe Te Observo -- Podia ter ido mais longe

Imagine um filme venezuelano-mexicano (coprodução) que participa de um festival europeu concorrendo contra "O Clã" (filme argentino dirigido por Pablo Trapero, produzido por este e por Pedro Almodóvar e estrelado por Guillermo Francela) e contra "A Garota Dinamarquesa" (premiado, badalado, dirigido por Tom Hooper e estrelado pelo recém-vencedor do Oscar Eddie Redmayne - sem contar que posteriormente figurou em algumas categorias do Oscar). Foi essa a difícil empreitada de DE LONGE TE OBSERVO no Festival de Veneza em 2015 e, para a surpresa da maioria, o longa foi consagrado com o Leão de Ouro, prêmio máximo da competição.


De forma didática, o prólogo faz uma introdução eficaz sobre o enredo: um homem de meia-idade que procura um rapaz que aceite satisfazê-lo sexualmente mediante considerável pagamento. O que se imagina é que ele pretende uma relação sexual, quando, na verdade, o que ele quer é que o rapaz tire a camiseta, fique de costas, abaixe a calça para mostrar parcialmente a nudez (não até o chão)... enquanto se masturba ao olhar. Apenas olhar. A edição de som focada no barulho do trânsito, a câmera na nuca em plongée e a pouca profundidade de campo indicam uma direção primorosa. Isto é, o trabalho inicial é impecável. Entretanto, o esmero técnico do prólogo não persiste na íntegra da obra, exceto no que se refere à profundidade de campo. De todo modo, a sequência inicial é bastante elucidativo: uma personagem que estuda o local onde fará a seleção, escolhe o rapaz que interessa, inicia a abordagem (entra no ônibus, senta ao lado e oferece dinheiro), leva o rapaz para a própria residência, senta-se numa poltrona e finalmente pede para o rapaz tirar a camisa e abaixar um pouco a calça enquanto se masturba.

Esta personagem é o protagonista Armando (Alfredo Castro), que claramente é um voyeurista sexual. Pode parecer pleonasmo, mas, na verdade, o cinema é uma atividade voyeurista por excelência: a psicanálise tem uma aproximação íntima (eventual trocadilho não é proposital) com a sétima arte, pois é a seara em que o prazer é externo e intangível. O espectador obtém prazer ao assistir a um filme, mas está ontologicamente distante dele, não podendo nele adentrar, muito menos nele fazer modificações. Talvez o voyeurismo constitua ainda uma característica humana dos novos tempos, numa sociedade artificial em que os valores humanos cedem espaço para formalismos e enriquecimento, onde as pessoas preferem o convívio virtual que a tecnologia propicia ao olhar próximo - preferem, em última análise, conviver com a tecnologia (as redes sociais são exemplo, pois o contato é com o computador, não com a pessoa em si) a ter contato físico afetivo com outrem. Vale dizer, há aversão ao outro, perceptível pelo distanciamento ideológico gerado pela ditadura das opiniões (ojeriza à democracia), que causa o distanciamento empírico amparado pela invasão da tecnologia ao cotidiano. Afinal, um filme não é literal, há algo além do que está lá expresso. A metáfora pode parecer ganhar proporções exageradas, como se fossem meras elucubrações, todavia, a tarefa aqui é ultrapassar a superfície das aparências.

A construção de Armando (como personagem) é sagaz ao apostar no minimalismo. É um grisalho solitário com boas condições financeiras e uma rotina de trabalho ordinária (com próteses dentárias), mas que esconde sua vida clandestina como voyeurista homossexual. O voyeurismo, inclusive, é implacável na personagem, que é um observador por excelência - mesmo quando tem a oportunidade de um algo a mais. A interpretação de Castro, sempre contida, é harmônica com a proposta. Tudo muda quando Armando conhece Elder (Luis Silva), segundo rapaz que ele aborda para a própria satisfação sexual. Nas aparências, Elder é parecido com o primeiro: jovem, másculo e magro. Contudo, Elder não é como os outros, pois não apenas não faz o que Armando deseja (embora tire a camisa) como leva até mais que o dinheiro oferecido (a carteira e uma estátua decorativa). Armando é, inicialmente, vítima de roubo praticado por Elder, e, incoerentemente, volta a procurar o rapaz. Tal incoerência, todavia, não consiste em inverossimilhança no roteiro, pois o que o protagonista quer é concretizar o intento voyeurista. Na verdade, Elder se torna uma obsessão para ele.

Da mesma forma, a construção de Elder também é precisa. Agressivo desde o início (ao responder com violência, ainda que suave, à primeira abordagem de Armando), com linguagem repleta de palavras de baixo calão, o rapaz é claramente condicionado culturalmente em relação à realidade que conhece. Tanto é assim que é fascinante o olhar infantil com que observa o trabalho do protagonista. Elder diz que, ao contrário de Armando, bateria nos filhos "para saberem logo como é a vida". Ao que tudo indica, Elder é uma pessoa socialmente marginalizada cuja personalidade agressiva constitui resposta à vida sofrida. Por outro lado, ele é vítima e também agressor social, pois atos de vandalismo - e crimes, é claro - são, para ele, cotidianos. Não surpreende ele, juntamente com amigos, atacar outros pelas costas, desarmados, com um cano. Ele é assim. Silva compreendeu bem o que seria necessário para o papel, explorando bem o que seu corpo dispõe - em especial a linguagem corporal expansiva e a entonação vocal minguante - para fazer um belo trabalho.

Porém, é charmosa a maneira pela qual o longa tem suas bases em alterações suaves e em contraposições radicais. Nesse sentido, é Elder o responsável pelas alterações suaves. Não que ele mude da água para o vinho, ao revés, a personalidade moralmente repugnante continua lá encrustada. Todavia, para quem agride um desconhecido na casa deste (inclusive golpeando-o mediante chutes quando caído no chão), lavar a louça como agradecimento por uma refeição é um enorme avanço. No fundo, o que ocorre é que ele abandona o egocentrismo, sem modificar substancialmente quem é para além disso. Ainda, são vários os contrastes que figuram como pilares do longa, seara em que a direção de arte ganha força. Por exemplo, a casa de Armando tem pesada decoração, repleta de objetos, e filmada numa fotografia escura, totalmente distinta da fotografia clara e decoração discreta - além de pobre, com panos ao invés de portas e cortinas - da casa de Elder. O contexto que condiciona as personagens também é de contrastes, em especial a profissão (próteses dentárias versus mecânico). O resultado, além da personalidade distinta, é a conduta diferenciada, inclusive nas pequenas coisas - enquanto Armando prefere vinho, Elder costuma beber cerveja. O próprio figurino atenta para o contraste: Armando usa sempre roupas mais formais, enquanto o jovem, exceto em uma cena específica, usa regatas e calças jeans - inclusive, com cores vivas que dão lugar ao branco, referente à personalidade abrandada (à exceção de uma blusa vermelha após cometer novo delito). Ambos gostam de estar na posição de superioridade, mas de formas diferentes: enquanto Armando compra a superioridade, Elder é um dominador - o que fica claro ao liderar a gangue local e ao guardar em casa a estátua roubada, símbolo do prêmio advindo da dominação.

A conclusão é que Lorenzo Vigas Castes faz um ótimo trabalho de direção, apesar de algumas falhas pontuais. Esquecer o sangue de um ferimento de faca beira o amadorismo, contudo, é louvável a elegância nas cenas que poderiam se tornar vulgares, notadamente as de violência e de sexo. Aliás, nudez e sexo são bastante atenuados: embora logo no prólogo haja um rapaz desnudo, seu corpo fica desfocado; embora saibamos que Armando está se masturbando, não há nada explícito (apenas sugestão). O diretor foge do apelativo sem descolar da realidade, afinal, o voyeurismo do protagonista exige nudez, que, todavia, é elemento acessório justificado pelo contexto, não está lá por si só. Há amplo domínio da mise-en-scène, evidenciado na cena em que Armando discute com a sua irmã, ela, calma, postada em frente a uma parede em tom pastel, ele, brabo, ao lado de um cepo de facas. Talvez seja exagerada a aposta na pouca profundidade de campo e em rack focus episódicos, entretanto, só o uso de tais ferramentas leva à conclusão de que há conhecimento da linguagem cinematográfica, algo que diretores badalados eventualmente não demonstram. Da mesma forma, a câmera subjetiva numa cena de perseguição poderia ser mais usada (ou seja, há rack focus em demasia e falta câmera subjetiva), ainda mais em se tratando de voyeurismo. Enfim, o saldo da direção é positivo e Vigas Castes é bastante promissor.

Não se pode olvidar que o Calcanhar de Aquiles do filme reside na estrutura narrativa. É isso, pois, que mais incomoda e prejudica um trabalho que talvez pudesse ser excelente - quando acaba sendo "apenas 'bom". São dois os grandes defeitos. O primeiro deles é o encaminhamento equivocado da narrativa, com rumo previsível e desfecho inverossímil. Exceto pela interação inicial entre Armando e Elder, o encaminhamento não surpreende e se torna até mesmo um pouco tedioso, justamente pela previsibilidade. O epílogo é bom apenas pelo trabalho dos atores, pois, em termos de plot, não é nada crível. Se a ideia era surpreender, o fez negativamente. O segundo defeito é que o longa é repleto de lacunas imensas, deixando o espectador sem resposta sobre questões que poderiam ser fundamentais. A principal lacuna - e isso não é spoiler, pois não demora para ser exposta - se refere aos pais das personagens. Tanto Armando quanto Elder têm um relacionamento conturbado com seus (respectivos) pais, todavia, não se explica o porquê da mágoa. Em especial de Armando, que é reticente sobre o tema. Os dois são unidos pelo trauma - seja ele qual for - paterno, trauma este que fica oculto do público. E o espectador terá razão ao fundamentar o desagrado com o filme em razão de vaguezas e furos de roteiro, que realmente prejudicam o produto final.

Isso tudo significa que DE LONGE TE OBSERVO tem predicados técnicos de relevo, que, contudo, são eclipsados por um roteiro mal construído que desperdiça um argumento interessante. Culturalmente o filme agrega, em especial por expor o abismo socioeconômico presente em Caracas, além da reflexão já exposta. Mas é uma película que podia ter ido mais longe.

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