quarta-feira, 24 de agosto de 2016

A Conexão Francesa -- Mais um francês excelente

Se propaganda é a alma do negócio, A CONEXÃO FRANCESA falhou ao não ter um marketing adequado. Por outro lado, ao não gerar expectativas, tem-se uma grata surpresa, pois o filme é ótimo. Repleto de ação, drama e suspense, tem um ritmo intenso de thriller, mantendo o espectador interessado pela narrativa instigante.


Ambientado na década de 1970 em Marselha, tem como protagonista Pierre (Jean Dujardin), um juiz da infância promovido para trabalhar na área do crime organizado. Na nova função, surpreende o poderoso traficante Zampa (Gilles Lellouche), acostumado com juízes coniventes e passivos em razão da falta de provas. Diversamente, Pierre fica determinado a enfrentar o tráfico que assola a cidade, fazendo de Zampa uma verdadeira obsessão. Ainda mais grave, o juiz adota uma metodologia heterodoxa na investigação e colheita de provas, inclusive, quando necessário, em detrimento de garantias individuais. Para ele, os fins justificam os meios quando se trata de enfrentar criminosos. Qualquer semelhança com a realidade e com um certo juiz brasileiro bem conhecido não é mera coincidência: há base em eventos reais.


Como se percebe, o argumento não é inovador, porém, a narrativa é conduzida de maneira excelente. É recheada de plot points, alcançando até mesmo algum grau de imprevisibilidade ao fugir da estrutura de três atos, com nuances e momentos cuja sutileza é um verdadeiro diferencial. E também a abordagem não é sensacionalista: Zampa é um vilão poderoso, com influência até fora da França, mas não chega à onisciência e onipresença inexplicável. Mesmo quando ele surpreende por estar um passo à frente, existe uma explicação coerente e plausível. Também os subplots são explorados na medida certa, com destaque ao passado de Pierre, que funciona como um fantasma ocasionalmente recordado (e apenas no discurso, não na prática). Outros subtemas estão lá, todavia, é preferível não mencionar, para evitar spoilers. Em síntese, do ponto de vista narratológico, há uma precisão elogiável, sem furos ou gorduras. E um grand finale, como todo bom filme.

Também a construção de personagens multifacetadas colabora para a construção de um roteiro rico. Apesar de ser o herói, Pierre não é o sujeito que constitui o norte moral perfeito. O juiz tem um passado traumático que parece que vai voltar a qualquer instante. Seu método maquiavelino de condução de investigações, inclusive cometendo diversos ilícitos - sempre voltado, em tese, para o bem comum -, não é imune a críticas. Quando Zampa vira para ele uma obsessão, sua dedicação extrema com o trabalho se dá em detrimento do aspecto familiar da sua vida, opção, mais uma vez, questionável. O script perde a oportunidade de injetar dubiedade na equipe de apoio no combate ao tráfico logo de início. Na verdade, eles têm participação deveras pequena, pois prevalece a dicotomia herói-vilão, mas sem um maniqueísmo tradicional. Zampa se aproxima mais do vilão arquetípico, mas é eficiente ao fugir do bipolar e mostrar relações de afeto (em especial com a esposa e os filhos). Não fosse ele um poderoso traficante, passaria como um cidadão comum. Não há nada de extraordinário no competente elenco: Jean Dujardin faz um bom trabalho com seu Pierre, sem grandiosidade; e Gilles Lellouche é um Zampa discreto, porém coeso.

A direção do longa é espetacular. A cargo de Cédric Jimenez, o que a película apresenta são ângulos de filmagem inusitados, prevalência de planos longos e fechados e mesmo filmagem com a câmera na mão. Interessante também o uso de plongées em cenas mais dramáticas, dando ao espectador a sensação de onipresença. Com roteiro e direção de qualidade, não poderia o longa ser ruim. O roteiro cria a diegese, a direção encaminha o espectador para a inserção naquele universo. A trilha sonora modesta acaba sendo irrelevante. Por outro lado, o design de produção é decepcionante: quase genérico, não há nada que seja marcante ao se referir ao contexto (França, anos 1970). Possivelmente a narrativa acabe ofuscando a arte. Ainda assim, o filme é excelente. Mais um francês excelente que entrou em cartaz no Brasil no presente ano.

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