segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Ben-Hur (2016) -- Desnecessário, mas não completamente descartável

Na já falada esteira de revisitação de obras consolidadas (em especial, clássicas), em razão do ocaso de criatividade em Hollywood, aparece um novo BEN-HUR nas salas de exibição. A Paramount fez, acertadamente, um marketing bastante modesto, reflexo do receio do fracasso da obra. Diferente de, por exemplo, "Esquadrão Suicida", que entrou no mercado com confiança exacerbada. Também acertou ao apresentar o filme não como um remake daquele de 1959, mas como uma nova obra baseada no livro clássico. Mais uma vez, sabedoria na decisão: primeiro porque a chance de superar a versão cinematográfica de 59 é ínfima, basta recordar que ela foi premiada com 11 estatuetas do Oscar; e segundo porque o viés adotado é outro. Afastar a associação com o longa estrelado por Charlton Heston se mostrou medida necessária porque a chance de vitória na comparação era reduzida, e a liberdade criativa no roteiro tomou rumo distinto.

Além de consistir em produção grandiosa e impecável em todos os detalhes, a versão de 59 trouxe um vanguardismo admirável para a sua época, havendo um lamentável retrocesso na de 2016. O Ben-Hur antigo traz um teor homoafetivo (assumido pelo próprio roteirista, e não mera elucubração de terceiros) que consegue dar um impulso na trama, enquanto que, no atual, Judah e Messala são irmãos de criação e grandes amigos - mas só. Ademais, o clássico tinha como mote a sede de vingança do protagonista; agora, Ben-Hur é uma figura mais fraterna, que até busca vingança, mas que, no fundo, quer paz. O mote de agora é a bandeira do amor ao próximo, imperiosa em dias atuais. Não se duvida que o conteúdo é louvável, porém, exibido em formato deveras tradicional, tornando-se retrógrado. Vale dizer, a solidariedade e a tolerância são demandas sociais das mais urgentes - embora Trumps e Bolsonaros discordem -, contudo, a abordagem é tão clássica que faz com que a película não consiga se destacar na temática. Não apenas por afastar o relacionamento homoafetivo em potencial (que, em pleno 2016, podia muito bem avançar), mas também, por exemplo, ao perder a oportunidade de criar figuras femininas significativas. As mulheres estão lá como necessidade demográfica, não posicionamento ideológico. Assim, ao invés de apostar na exportação de conflitos sociais contemporâneos, o plot prefere não inovar e manter o status quo daquele tempo e os conflitos inerentes ao período, esperando que o espectador faça uma interpretação analógica. Naquele tempo, a luta era romanos versus judeus, pessoas sem lepra versus pessoas com lepra. Hoje, machistas versus pessoas de bom-senso, homofóbicos versus pessoas com cérebro, enfim, intolerantes de todos os tipos versus pessoas que respeitam as eventuais diferenças alheias. Francamente, os moldes adotados para transmitir a mensagem cristã de tolerância são suficientes para tocar as pessoas que hoje discriminam as minorias? Não seria melhor injetar temáticas mais atuais?

É por essas e outras que não há como não concluir que o roteiro é fraco, se comparado ao clássico, e ridículo, se comparado ao livro - é justo mencionar, porém, que quase todos os roteiros não fazem jus ao livro em que se baseiam. Ponto nodal para sua falha é a formação de personagens cujas motivações são pouco convincentes, consequência de fazer um filme enxuto. "O Senhor dos Anéis" não é uma trilogia apenas pela divisão original dos livros, mas porque, para manter a coerência sem prejuízo da profundidade, é preciso muito tempo de tela. Para uma narrativa extensa como "Ben-Hur", pouco mais de duas horas não são suficientes. De um lado, o protagonista flerta com o ateísmo ("se existe um Deus, por que ele não é justo para o mundo?"), de outro, é altruísta ao ajudar um zelote (correndo risco pessoal), depois, abraça a causa da vingança pessoal, para, no fim... nem é preciso dizer o que acontece. Judah é bipolar? Por sua vez, Messala vive uma vida inteira com a família que o criou, quando, repentinamente, como um rompante (seria uma ideia amadurecida não mostrada e que o espectador deve presumir?), decide virar soldado. Enquanto soldado, ele é contrário aos métodos sanguinários dos romanos, até ter uma nova mudança brusca para não se importar em ferir a própria família. Ou seja, Messala vive de rompantes? O africano ganancioso não sabe as habilidades de Ben-Hur em conduzir uma biga (até porque conhecimento teórico não é sinônimo de habilidade prática), ainda assim, aposta uma fortuna no judeu... apenas para ajudá-lo? Não soa crível que algumas personagens tomem certas atitudes, pois suas motivações são superficiais, quando não contraditórias. O prólogo veloz enuncia que o longa precisa ser acelerado, reduzindo dezoito anos em duas horas.

O que é feito em termos de construção de personagens é superficial e ocasionalmente contraditório, pois não há preocupação em dar a eles profundidade. Judah Ben-Hur é bipolar, mas isso não é patológico no roteiro porque a mensagem de solidariedade e a ação prevalecem - o mesmo vale para Messala. Isto é, deixar a coerência de lado, nesse quesito específico é proposital. É uma falha já prevista e de digestão possível, porque o que marca é o que é reiterado. Messala tem rompantes e chega a humilhar seu irmão de criação, contudo, majoritariamente, ele nutre bastante afeto por Judah, em sentido, é claro, fraternal, para que a comunidade cristã mais conservadora não fique chocada em razão de uma manifestação de amor entre pessoas do mesmo sexo, como na cena em que o carrega nas costas em razão de um acidente. O protagonista é vivido por Jack Huston, em atuação fajuta (comparar com Charlton Heston seria uma heresia!); o antagonista, por Toby Kebbell, um pouco mais convincente.

Também está no elenco Morgan Freeman, como um africano sem nome. Ironicamente, Freeman está lá para, exclusivamente, colocar o nome dos créditos, chamar mais espectadores e atuar no piloto-automático. Logo na primeira aparição, sua imponência é visível (e a filmagem em contraplongée colabora), mas muito mais pelo seu carisma do que pelo trabalho de atuação. Ao emprestar sua voz numa narração voice over no prólogo, o ator corrobora para a ideia de que sua mera presença é um atrativo, afinal, quem não gosta de Morgan Freeman? Porém, em termos dramáticos, o trabalho é frustrante, em especial quando se conhece o potencial do renomado ator. A frustração atinge o ápice na cena de discussão entre o africano e um arrogante Ben-Hur, quando este fala sobre sofrimento e aquele o corrige, declarando conhecer muito melhor a área - menciona uma história trágica relacionada ao filho e uma vida triste, sem jamais comover. Diametralmente oposto, Rodrigo Santoro dá outro quilate à parte dramática do longa: em apenas quatro aparições, sua versão de Jesus é a mais comovente do filme inteiro e melhor que muitas versões de Cristo que o cinema já viu. Evidentemente, não se pode exagerar e afirmar que é a melhor versão ou que ele é o grande atrativo: isso seria ufanismo desmedido. Santoro já provou ser competente desde "Carandiru" e não foi mal na primeira grande oportunidade hollywoodiana com "300" (as outras foram desprezíveis), porém, ainda não recebeu o espaço que pleiteia. De todo modo, o Jesus de Santoro possui um dos melhores e um dos piores elementos de "Ben-Hur". Ao abraçar um viés minimalista, não se trata de uma celebridade da época ou de um feiticeiro surpreendente, é um homem comum, um carpinteiro com um discurso afiado sobre a divindade que defende, e que é capaz de se sacrificar pelos outros, em especial pessoas em situação de vulnerabilidade. É uma versão mais modesta, mas não por isso menos atrativa. O problema não é do ator que, por outro lado, a ele é dado espaço exagerado. Jesus dá uma carga emocional mais persuasiva graças à boa atuação de Santoro, entretanto, é um coadjuvante de destaque demasiadamente grande. São só quatro aparições pontuais, como dito, todavia, ele permeia a fita com uma onipresença que inexiste nas demais versões. Cristo é mencionado sempre para revelar o momento histórico, não para auxiliar na condução da narrativa. Pior, desta vez não apenas Jesus é engrenagem narrativa como chega a ser quase um amigo de Ben-Hur, tamanho o exagero do seu destaque. Como afirmar que o filme é uma adaptação do livro, se passagens são retiradas de outra fonte (a Bíblia)? O resultado é essa sensação artificial de um filme gospel penetrando eventualmente um épico, não havendo êxito de destaque em nenhuma das áreas - ainda que a versão de Jesus, reitera-se, seja melhor que muitas outras que chegam ao cinema. Em especial na cena de crucificação, o desempenho de Santoro conduz a uma fixação em torno da personagem que certamente comoverá os cristãos mais emotivos. É até bonito de ver, mas a concepção da história de Ben-Hur não é a de um conto cristão de benevolência, havendo uma distorção do argumento original. Significa dizer que a liberdade criativa não apenas foi usada, mas abusada.

O erro acaba sendo fatal porque a direção de Timur Bekmambetov é inapta na faceta dramática do longa. Há cenas que chegam a ser risíveis, de tão artificial que é a emoção - exemplo claro é aquela em que Messala visita seus familiares, anos depois de consolidar-se como soldado romano. A comoção maior existe nas cenas de Jesus, porém, reitere-se que é graças ao trabalho do ator, visivelmente empenhado - ignore-se a trilha sonora constante e piegas, bem desnecessária. O saldo da direção é negativo: uma ótima elipse dos anos de Ben-Hur como escravo de galés, nada mais que ganhe notoriedade. Nem mesmo a cena da corrida de bigas consegue impressionar: os efeitos visuais não deslumbram, há um exagero de cortes e embelezamento (como os cavalos permanecem tão brancos naquela sujeira?) e um descolamento risível do real (como Ben-Hur consegue ouvir e seguir as orientações do africano naquela algazarra da corrida?). Como de costume, o 3D é dispensável, apesar de não ser ruim (bom uso de profundidade de campo, cenários com neve e chuva, nada novo e que faça a diferença). A fotografia é razoável, exceto na cena dos navios, que é tão escura que prejudica a nitidez (provavelmente esqueceram que o uso de óculos 3D já escurece a imagem). Por sua vez, a trilha sonora é lastimável, investindo na pieguice e, no final, no nonsense (qual a proximidade entre aquele pop moderno com a obra?).

Como se percebe, não são poucos os equívocos de "Ben-Hur", um filme claramente desnecessário e que não acrescenta nada em termos cinematográficos. Aposta em momentos de ação, drama e gospel, distanciando-se do conteúdo clássico que deu notoriedade ao fascinante enredo. É evidente que a versão de 1959 é infinitamente superior. No entanto, a modéstia do marketing não permite enganos: é uma variante menor de uma ideia gigantesca, algo que não alcança o brilhantismo ao nem sequer tentar. Há honestidade no trabalho, concebido para ser só mais um. Não fracassar nas bilheterias já lhe é suficiente. Fraco? Sim, mas existem muitos outros imensamente inferiores no mercado. Não é um remake desprezível como vários outros. Portanto, ainda que seja preferível o de 59, o atual é desnecessário, mas não completamente descartável ao revisitar um clássico, talvez dando maior notoriedade a uma história que merece ser conhecida. Quem sabe o espectador que desconhece vai atrás do vencedor de 11 prêmios do Oscar, ou do livro?

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