
Além de consistir em produção grandiosa e impecável em todos os detalhes, a versão de 59 trouxe um vanguardismo admirável para a sua época, havendo um lamentável retrocesso na de 2016. O Ben-Hur antigo traz um teor homoafetivo (assumido pelo próprio roteirista, e não mera elucubração de terceiros) que consegue dar um impulso na trama, enquanto que, no atual, Judah e Messala são irmãos de criação e grandes amigos - mas só. Ademais, o clássico tinha como mote a sede de vingança do protagonista; agora, Ben-Hur é uma figura mais fraterna, que até busca vingança, mas que, no fundo, quer paz. O mote de agora é a bandeira do amor ao próximo, imperiosa em dias atuais. Não se duvida que o conteúdo é louvável, porém, exibido em formato deveras tradicional, tornando-se retrógrado. Vale dizer, a solidariedade e a tolerância são demandas sociais das mais urgentes - embora Trumps e Bolsonaros discordem -, contudo, a abordagem é tão clássica que faz com que a película não consiga se destacar na temática. Não apenas por afastar o relacionamento homoafetivo em potencial (que, em pleno 2016, podia muito bem avançar), mas também, por exemplo, ao perder a oportunidade de criar figuras femininas significativas. As mulheres estão lá como necessidade demográfica, não posicionamento ideológico. Assim, ao invés de apostar na exportação de conflitos sociais contemporâneos, o plot prefere não inovar e manter o status quo daquele tempo e os conflitos inerentes ao período, esperando que o espectador faça uma interpretação analógica. Naquele tempo, a luta era romanos versus judeus, pessoas sem lepra versus pessoas com lepra. Hoje, machistas versus pessoas de bom-senso, homofóbicos versus pessoas com cérebro, enfim, intolerantes de todos os tipos versus pessoas que respeitam as eventuais diferenças alheias. Francamente, os moldes adotados para transmitir a mensagem cristã de tolerância são suficientes para tocar as pessoas que hoje discriminam as minorias? Não seria melhor injetar temáticas mais atuais?
É por essas e outras que não há como não concluir que o roteiro é fraco, se comparado ao clássico, e ridículo, se comparado ao livro - é justo mencionar, porém, que quase todos os roteiros não fazem jus ao livro em que se baseiam. Ponto nodal para sua falha é a formação de personagens cujas motivações são pouco convincentes, consequência de fazer um filme enxuto. "O Senhor dos Anéis" não é uma trilogia apenas pela divisão original dos livros, mas porque, para manter a coerência sem prejuízo da profundidade, é preciso muito tempo de tela. Para uma narrativa extensa como "Ben-Hur", pouco mais de duas horas não são suficientes. De um lado, o protagonista flerta com o ateísmo ("se existe um Deus, por que ele não é justo para o mundo?"), de outro, é altruísta ao ajudar um zelote (correndo risco pessoal), depois, abraça a causa da vingança pessoal, para, no fim... nem é preciso dizer o que acontece. Judah é bipolar? Por sua vez, Messala vive uma vida inteira com a família que o criou, quando, repentinamente, como um rompante (seria uma ideia amadurecida não mostrada e que o espectador deve presumir?), decide virar soldado. Enquanto soldado, ele é contrário aos métodos sanguinários dos romanos, até ter uma nova mudança brusca para não se importar em ferir a própria família. Ou seja, Messala vive de rompantes? O africano ganancioso não sabe as habilidades de Ben-Hur em conduzir uma biga (até porque conhecimento teórico não é sinônimo de habilidade prática), ainda assim, aposta uma fortuna no judeu... apenas para ajudá-lo? Não soa crível que algumas personagens tomem certas atitudes, pois suas motivações são superficiais, quando não contraditórias. O prólogo veloz enuncia que o longa precisa ser acelerado, reduzindo dezoito anos em duas horas.
O que é feito em termos de construção de personagens é superficial e ocasionalmente contraditório, pois não há preocupação em dar a eles profundidade. Judah Ben-Hur é bipolar, mas isso não é patológico no roteiro porque a mensagem de solidariedade e a ação prevalecem - o mesmo vale para Messala. Isto é, deixar a coerência de lado, nesse quesito específico é proposital. É uma falha já prevista e de digestão possível, porque o que marca é o que é reiterado. Messala tem rompantes e chega a humilhar seu irmão de criação, contudo, majoritariamente, ele nutre bastante afeto por Judah, em sentido, é claro, fraternal, para que a comunidade cristã mais conservadora não fique chocada em razão de uma manifestação de amor entre pessoas do mesmo sexo, como na cena em que o carrega nas costas em razão de um acidente. O protagonista é vivido por Jack Huston, em atuação fajuta (comparar com Charlton Heston seria uma heresia!); o antagonista, por Toby Kebbell, um pouco mais convincente.
Também está no elenco Morgan Freeman, como um africano sem nome. Ironicamente, Freeman está lá para, exclusivamente, colocar o nome dos créditos, chamar mais espectadores e atuar no piloto-automático. Logo na primeira aparição, sua imponência é visível (e a filmagem em contraplongée colabora), mas muito mais pelo seu carisma do que pelo trabalho de atuação. Ao emprestar sua voz numa narração voice over no prólogo, o ator corrobora para a ideia de que sua mera presença é um atrativo, afinal, quem não gosta de Morgan Freeman? Porém, em termos dramáticos, o trabalho é frustrante, em especial quando se conhece o potencial do renomado ator. A frustração atinge o ápice na cena de discussão entre o africano e um arrogante Ben-Hur, quando este fala sobre sofrimento e aquele o corrige, declarando conhecer muito melhor a área - menciona uma história trágica relacionada ao filho e uma vida triste, sem jamais comover. Diametralmente oposto, Rodrigo Santoro dá outro quilate à parte dramática do longa: em apenas quatro aparições, sua versão de Jesus é a mais comovente do filme inteiro e melhor que muitas versões de Cristo que o cinema já viu. Evidentemente, não se pode exagerar e afirmar que é a melhor versão ou que ele é o grande atrativo: isso seria ufanismo desmedido. Santoro já provou ser competente desde "Carandiru" e não foi mal na primeira grande oportunidade hollywoodiana com "300" (as outras foram desprezíveis), porém, ainda não recebeu o espaço que pleiteia. De todo modo, o Jesus de Santoro possui um dos melhores e um dos piores elementos de "Ben-Hur". Ao abraçar um viés minimalista, não se trata de uma celebridade da época ou de um feiticeiro surpreendente, é um homem comum, um carpinteiro com um discurso afiado sobre a divindade que defende, e que é capaz de se sacrificar pelos outros, em especial pessoas em situação de vulnerabilidade. É uma versão mais modesta, mas não por isso menos atrativa. O problema não é do ator que, por outro lado, a ele é dado espaço exagerado. Jesus dá uma carga emocional mais persuasiva graças à boa atuação de Santoro, entretanto, é um coadjuvante de destaque demasiadamente grande. São só quatro aparições pontuais, como dito, todavia, ele permeia a fita com uma onipresença que inexiste nas demais versões. Cristo é mencionado sempre para revelar o momento histórico, não para auxiliar na condução da narrativa. Pior, desta vez não apenas Jesus é engrenagem narrativa como chega a ser quase um amigo de Ben-Hur, tamanho o exagero do seu destaque. Como afirmar que o filme é uma adaptação do livro, se passagens são retiradas de outra fonte (a Bíblia)? O resultado é essa sensação artificial de um filme gospel penetrando eventualmente um épico, não havendo êxito de destaque em nenhuma das áreas - ainda que a versão de Jesus, reitera-se, seja melhor que muitas outras que chegam ao cinema. Em especial na cena de crucificação, o desempenho de Santoro conduz a uma fixação em torno da personagem que certamente comoverá os cristãos mais emotivos. É até bonito de ver, mas a concepção da história de Ben-Hur não é a de um conto cristão de benevolência, havendo uma distorção do argumento original. Significa dizer que a liberdade criativa não apenas foi usada, mas abusada.
O erro acaba sendo fatal porque a direção de Timur Bekmambetov é inapta na faceta dramática do longa. Há cenas que chegam a ser risíveis, de tão artificial que é a emoção - exemplo claro é aquela em que Messala visita seus familiares, anos depois de consolidar-se como soldado romano. A comoção maior existe nas cenas de Jesus, porém, reitere-se que é graças ao trabalho do ator, visivelmente empenhado - ignore-se a trilha sonora constante e piegas, bem desnecessária. O saldo da direção é negativo: uma ótima elipse dos anos de Ben-Hur como escravo de galés, nada mais que ganhe notoriedade. Nem mesmo a cena da corrida de bigas consegue impressionar: os efeitos visuais não deslumbram, há um exagero de cortes e embelezamento (como os cavalos permanecem tão brancos naquela sujeira?) e um descolamento risível do real (como Ben-Hur consegue ouvir e seguir as orientações do africano naquela algazarra da corrida?). Como de costume, o 3D é dispensável, apesar de não ser ruim (bom uso de profundidade de campo, cenários com neve e chuva, nada novo e que faça a diferença). A fotografia é razoável, exceto na cena dos navios, que é tão escura que prejudica a nitidez (provavelmente esqueceram que o uso de óculos 3D já escurece a imagem). Por sua vez, a trilha sonora é lastimável, investindo na pieguice e, no final, no nonsense (qual a proximidade entre aquele pop moderno com a obra?).
Como se percebe, não são poucos os equívocos de "Ben-Hur", um filme claramente desnecessário e que não acrescenta nada em termos cinematográficos. Aposta em momentos de ação, drama e gospel, distanciando-se do conteúdo clássico que deu notoriedade ao fascinante enredo. É evidente que a versão de 1959 é infinitamente superior. No entanto, a modéstia do marketing não permite enganos: é uma variante menor de uma ideia gigantesca, algo que não alcança o brilhantismo ao nem sequer tentar. Há honestidade no trabalho, concebido para ser só mais um. Não fracassar nas bilheterias já lhe é suficiente. Fraco? Sim, mas existem muitos outros imensamente inferiores no mercado. Não é um remake desprezível como vários outros. Portanto, ainda que seja preferível o de 59, o atual é desnecessário, mas não completamente descartável ao revisitar um clássico, talvez dando maior notoriedade a uma história que merece ser conhecida. Quem sabe o espectador que desconhece vai atrás do vencedor de 11 prêmios do Oscar, ou do livro?
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