quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Onde Está Segunda? -- Outra verdade inconveniente

A Netflix apresenta ao seu público uma grata surpresa com ONDE ESTÁ SEGUNDA?. É bem verdade que o título brasileiro não é atrativo, porém, esse critério jamais pode ser levado em consideração no cinema - se fosse assim, "Festim Diabólico" sofreria um pré-conceito injusto. O filme merece ser visto porque agrada a vários tipos de público.

O argumento é razoavelmente original e muito bem arquitetado, embora possa parecer complicado: o aumento crescente da população reduziu ainda mais os recursos naturais, o que forçou a humanidade e investir pesadamente em alimentos geneticamente modificados. Contudo, o resultado foi ruim, pois teve como efeito colateral o nascimento cada vez maior de gêmeos. Com isso, a renomada bióloga Nicolette Cayman (Glenn Close) propõe a Lei de Alocação Infantil, pela qual ficaria instituída a política do filho único, ou seja, proibindo os casais de terem mais de um filho. Os irmãos seriam congelados em criogenia (cryo sleep) pela agência controlada por ela, para serem despertados quando o planeta estiver em melhores condições. Todos os países adotam a sua ideia, mediante um controle rígido de pulseiras eletrônicas. Entretanto, Terrence Settman (Willem Dafoe) consegue salvar suas sete netas gêmeas, ensinando-as a se revezarem em público em cada dia da semana - e cada uma assume o nome, justamente, de cada dia da semana, daí o "Segunda" do título - e assumirem o nome de Karen Settman, sua mãe (morta no parto). Segunda sai de casa como Karen nas segundas-feiras, Terça nas terças-feiras, e assim por diante. Trinta anos se passam e elas seguem essa rotina, até que Segunda não retorna para casa.

Como se vê, trata-se de um enredo inteligente ao unir o contexto de uma distopia futurística à teoria populacional neomalthusiana. A distopia reside na evidente opressão estatal, na medida em que a Lei de Alocação Infantil, de maneira desumana, afasta os genitores de seus filhos, ainda que com uma justificativa teoricamente nobre (um momento mais propício). A vigilância constante é um elemento que se faz presente, com a direção dando ênfase à verificação da identidade em todos os lugares, através das pulseiras. Quanto ao neomalthusianismo, é a visão do subdesenvolvimento como consequência do excesso populacional: o intenso crescimento populacional, segundo essa teoria, seria responsável pelo avanço das mazelas globais como fome, pobreza e proliferação de doenças, o que eleva o investimento estatal para os serviços básicos (educação e saúde) e torna os recursos naturais mais e mais escassos, dificultando, evidentemente, o desenvolvimento econômico. Em síntese, referida teoria culpa a livre expansão populacional pela pobreza (em sentido amplo). A solução seria, nessa ótica, o planejamento familiar, que, no filme, seria controlado pelo Estado, ou, mais precisamente, pela agência que age através do Estado - na verdade, não fica exatamente clara a natureza da relação entre a agência e o Estado (se a agência é contratada pelo governo, representante etc.). Para explicar tudo isso, há um prólogo mínimo: situa o espectador, com noticiários simulados e música de tensão (sugerindo a atmosfera negativa), sendo suficiente, todavia, poderia ser mais profundo, pois é bastante sucinto.

O roteiro vive de erros e acertos. Além do argumento elogiável, no geral, a narrativa é fluida e coerente, sem paradoxos ou furos inaceitáveis. Em visão macro, o script é bom. Merece destaque o ponto chave, um plot point essencial, referente ao sumiço de Segunda: a situação é enigmática, deixando o espectador com muitas dúvidas e elaborando inúmeras teorias para explicar o que aconteceu a ela. É essa a ideia. Na virada do segundo para o terceiro ato, ocorrem dois plot twists, um deles previsível, porque o texto não soube lidar com o segredo para surpreender. Existe ainda outra reviravolta ao final, que surpreende, mas que não faz muito sentido em relação às cenas precedentes. É o ímpeto de colocar várias reviravoltas, mesmo que eventualmente forçadas. Também o trabalho de construção das personagens não é das melhores, começando com a antagonista, que é deveras superficial. Glenn Close acaba sendo desperdiçada ao interpretar uma vilã impessoal e sem motivação convincente, o que prejudica consideravelmente a trama, tendo em vista que Cayman é o ápice da vilania da película - ainda que o polo antagonista eventualmente conte com outras personagens. Também Willem Dafoe é desperdiçado em um papel de poucos minutos em cena, e mais pacífico do que de costume. Terrence Settman é um sujeito que, ao criar as netas, alia humanidade e racionalidade, o que é expressado pela metáfora do dedo (quem assistir, entenderá). Para educar, é preciso dar afeto, mas, concomitantemente, mostrar tudo que for preciso, mesmo que seja doloroso.

O trabalho mais árduo de atuação ficou com a sueca Noomi Rapace, que já tinha comprovado talento em "Os Homens que Não Amavam as Mulheres" (a versão sueca, não o fajuto remake hollywoodiano). Rapace é uma excelente atriz e aqui ela apenas confirma a qualidade do seu trabalho. Afinal, interpretar sete personagens diferentes certamente não é fácil (James McAvoy que o diga!). As gêmeas são diferenciadas pelo visual, o que ajuda bastante, é verdade, mas é a atriz que fornece os detalhes imprescindíveis para lhes dar personalidade, através da fala, da linguagem corporal e do olhar. O problema é que o roteiro dá a ela personagens majoritariamente unidimensionais: a rebelde, a inteligente, a sensual, a dissimulada etc. Felizmente, algumas acabam aparecendo mais e tendo funções mais relevantes, explorando perfis diferentes, mas essa é a exceção.

O responsável pela direção é Tommy Wirkola, que assinou também o pavoroso "João e Maria: Caçadores de Bruxas". Sem dúvida, a melhora ocorreu em progressão geométrica. Há um domínio da hibridização dos gêneros, de modo que fica difícil catalogar o filme em um só: é uma ficção, todavia, tem momentos de muito suspense entre o primeiro e o segundo ato, contudo, entre o segundo e o terceiro, prevalece a ação. A vantagem é que o trânsito entre os gêneros exige domínio da mise en scène característica de cada um, o que é satisfatório nesse filme. Isto é, não tem as melhores cenas de ação já vistas, mas elas são boas, como a que as gêmeas lutam contra os agentes em seu apartamento - nessa cena, o que se tem são algumas personagens quase idênticas (são gêmeas!), a mesma atriz (possivelmente, várias dublês), todas lutando contra vários homens diferentes, então, o que o diretor faz é, inteligentemente, priorizar ângulos diferentes do apartamento, como se fossem locais absolutamente distintos, acelerando também a montagem. No suspense, há uma cena em que a personagem fica trancada em um local fechado, esperando a chegada de um agente: o que o diretor faz é filmar o local, praticamente em trezentos e sessenta graus, para mostrar seu aperto e que não havia para onde fugir.

A opção pelos flashbacks da infância acaba sendo um bom recurso pela didática e por subverter a lógica da linearidade da narrativa, que poderia torná-la enfadonha. A direção também aproveita para expor muito a avançadíssima tecnologia da diegese, como um espelho que percebe vestígios de cansaço e imperfeições faciais (boca desidratada, nariz inchado etc.) e uma tela touch screen na mão... sem tela. Ou seja, uma tecnologia futurística bastante criativa e surreal, ao menos para o olhar hodierno. A trilha sonora é um pouco óbvia, mas não incomoda. O que pode incomodar são algumas incongruências do longa, em especial dos agentes que trabalham para Cayman: em tese, representam a lei, o que torna estranho o fato de atirarem em pessoas inocentes, inclusive em direção à multidão, com o objetivo de acertar apenas uma pessoa.

Apesar de algumas ressalvas, ONDE ESTÁ SEGUNDA? é um dos poucos filmes que aponta para outra verdade inconveniente, que concerne ao crescimento populacional enquanto os recursos naturais reduzem. O filme eleva a questão a patamares extremos nos quais a humanidade não chegou, mas... e se/quando chegar?

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