segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Eu, Daniel Blake -- Retrato do Zeitgeist

O Festival de Cannes foi agraciado com uma comédia de erros sem igual, um drama cômico (e não uma comédia dramática, pois prevalece a tristeza em detrimento do humor, também presente, mas em menor quantidade) capaz de deixar atônito o mais racional espectador. Trata-se de EU, DANIEL BLAKE, produção britânico-franco-belga que, apesar da origem, dialoga muito bem com países como o Brasil. Isto é, o retrato elaborado pelo filme é tão familiar ao público brasileiro que poderia tranquilamente se passar aqui, e não em Londres.

O nome do título pode parecer simplista, quando, na verdade, rende uma das melhores cenas do longa. Daniel Blake (Dave Johns) é um marceneiro que, após um ataque cardíaco, é obrigado a se afastar temporariamente do trabalho, buscando assistência social do Estado para prover a própria subsistência. Entretanto, Blake enfrenta enorme dificuldade para conseguir a ajuda estatal, principalmente em razão das burocracias homéricas e da sua imensa dificuldade com computadores. Na sua empreitada atrás de um auxílio a que tem direito, ele acaba conhecendo e depois se aproximando de Katie (Hayley Squires), mãe solteira de duas crianças que também não dá conta do sustento de si e dos filhos. Ou seja, uma narrativa comum, que pode se encaixar na vida de qualquer pessoa que não tenha nascido em berço de ouro. Sem julgamentos moralistas, a proposta de "Eu, Daniel Blake" é retratar o comum, acompanhar um cidadão que precisa da ajuda do governo e que encontra dificuldades enormes para efetivar o que é apenas direito seu.

O filme levanta diversos questionamentos e reflexões. Seria o cidadão, para o Estado, apenas um número? Isso justifica o tratamento impessoal? Existe um exagero na burocracia? De onde vem o caos na assistência social? Repleta de camadas, a fita menciona pessoas marginalizadas que estão próximas do protagonista: não apenas Katie, mas um vizinho seu que se vê impelido a vender tênis contrabandeado para auferir renda, em razão dos ínfimos ganhos no mercado de trabalho londrino. Nesse sentido, em Londres, o mercado de trabalho não é um corredor com várias portas abertas. Evidentemente, isso não é só lá. Seria esse o Zeitgeist ocidental?

A evolução da narrativa é sensacional. Com bastante humor, sem deixar de lado a seriedade inerente ao tema, o espectador consegue enxergar o lado ruim da tecnologia, referente ao analfabetismo digital. A visão da tecnologia como auxílio da humanidade já é solidificada, todavia, ela pode também ser vilã - e o filme mostra isso muito bem. Computadores e smartphones podem ser uma realidade cotidiana para a maioria, mas não para todos. No caso de Daniel Blake, o sofrimento não é apenas com computadores, vez que o governo não lhe é muito gentil. Novamente fiel à realidade, ele encontra no serviço social pessoas de diferentes perfis. Infelizmente, parece que nem todas são vocacionadas à função. Chega a ser concomitantemente revoltante e desesperadora a situação na qual Blake se encontra, um labirinto sistêmico feito para desamparar o cidadão a partir de uma legitimidade institucional. Pior é pensar que Daniel Blake não está apenas na ficção, mas que existem muitos naquele contexto (ou até pior) no mundo todo.

A situação de Katie não é menos dramática, cabendo a ela uma das cenas mais dramáticas da película. Quando Daniel e Katie interagem, torna-se perceptível a sensibilidade daquelas pessoas comuns, unidas pela solidariedade entre eles. Aos poucos, ele assume uma posição na família com o mero vínculo da fraternidade, sendo o afeto o ponto nevrálgico de suas vidas pessoais, isto é, justamente o que lhes falta (além de dinheiro, é claro). A materialização do carinho entre eles deságua nos filhos de Katie, que têm em Daniel uma figura paterna sem autoritarismo (estaria mais próximo de um avô).

O excelente roteiro acerta não apenas na narrativa em si como também na construção das personagens. O mau humor de Daniel Blake engana apenas nos minutos iniciais, ficando evidente que ele tem um enorme coração - tanto é assim que ajuda uma desconhecida. Katie poderia recair em personas estereotipadas, contudo, o plot prefere conceder a ela um posto nobre cuja sustentação é a amizade sem segundas intenções - e que isso não dê a entender que o filme é no estilo feel good. O bom trabalho do elenco corrobora para a identificação cinematográfica secundária das personagens, em especial, claro, Dave Johns, que atinge o lado humano da personagem de maneira a cativar no público o seu espírito de indignação e altruísmo.

Não fica atrás a competente direção de Ken Loach, que, se não alcança o brilhantismo, é eficaz numa tarefa ingrata. A burocracia que Blake enfrenta poderia se tornar enfadonha no longa, a opção pelo humor em doses tópicas se revela inteligente na medida em que escapa do tédio e facilita a já mencionada identificação cinematográfica secundária. A opção pelo minimalismo - exemplo é o prólogo, que consegue ser didático sem ser simplista, engraçado sem deixar de ser sério - é compatível com a proposta, distante de invencionices cabíveis, talvez, em outros gêneros. O realismo na mise en scène se torna explícito nas tomadas em que as personagens fazem caminhadas e enfrentam grandes filas, deixando fidedigna a contextualização. Ironicamente, é justamente ao fazer o básico que Loach encerra a sua obra com um grand finale, deixando estupefato o espectador que concorda com aquela visão de mundo. De ruim, apenas uma montagem sem norte técnico, que chega ao cúmulo de usar fades dentro de uma mesma sequência (como a da lan house), mas outras técnicas em outros momentos. Os fades são incômodos, mas a falta de propósito na sua utilização é de uma atecnia incompreensível.

A provável resposta a uma pergunta elaborada alguns parágrafos acima é positiva. EU, DANIEL BLAKE é um lamentável retrato do Zeitgeist ocidental (melhor excluir o oriente, fundado em premissas diferentes) - evidentemente, no que se refere à relação Estado-cidadão -, uma realidade banal, ainda que triste. Sua banalidade não obsta a indignação, mas não é suficiente para uma mudança de paradigma. É como se a existência de Daniel Blake fosse inafastável do aparato estatal como é concebido.  O status quo é péssimo, o que o longa faz é uma denúncia. O que não é pouco.

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