sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Animais Noturnos -- Admiravelmente ousado, mas bastante heterodoxo

Um escritor pede para a sua ex-mulher que leia um exemplar do seu novo livro, que conta a história de um pai de família cuja vida muda drasticamente a partir de um trágico evento. Com esse enredo, ANIMAIS NOTURNOS não consegue indicar o quão diferenciado ele é. Indicado ao Leão de Ouro, se figurar em alguma(s) categoria(s) do Oscar, não será surpresa. Trata-se de um filme forte, por vezes chocante, que não agrada a qualquer tipo de público. Mas é fenomenal!

Ousado, compõe-se de três linhas narrativas - caminho fácil para uma bagunça, o que não ocorre. Cabe mencionar que o roteiro foi elaborado pelo diretor, porém, baseado em um livro. A primeira linha narrativa é a que acompanha a vida de Susan (Amy Adams), casada com Hutton (Armie Hammer) e divorciada de Edward (Jake Gyllenhaal). Aos poucos, se descobre (logo no começo, logo, não há spoiler aqui) que Susan é infeliz no seu casamento. Pior, se considera mal-agradecida por isso, pois não tem o direito de ser infeliz porque tem tudo. O que faz uma pessoa feliz? É esse o primeiro questionamento do plot, ao qual diversos outros se seguem. Susan foi casada com o escritor Edward, que encaminha para ela um manuscrito do seu novo livro (intitulado "Animais Noturnos"), que dá ensejo à segunda narrativa, decorrente da leitura de Susan. Antes, uma das várias simbologias inteligentes: ao abrir o pacote cujo remetente é o ex, a destinatária se corta com o papel. No livro de Edward, Tony (o mesmo Jake Gyllenhaal) sofre um abalo trágico na sua família, que faz dele outra pessoa, muito mais sombria e inescrupulosa. Há uma rebuscada metalinguagem: ficção dentro da ficção. Como se não bastasse, o roteiro aborda uma terceira narrativa, referente ao pretérito diegético, o casamento entre Susan e Edward, cuja temática central é atinente a desafios profissionais e conflitos familiares (natural, pois eles são mais jovens).

É graças à maravilhosa montagem que o longa não se torna confuso. São três enredos: um fictício dentro da diegese, um presente diegético e um pretérito diegético. Apenas dois do elenco estão em mais de uma: Jake Gyllenhaal, numa atuação formidável, embora não consiga estabelecer a sutileza necessária para diferenciar os papéis, exceto nos momentos extremos; e Amy Adams, em mais uma atuação excelente e que poderia justificar mais uma indicação ao Oscar (contudo, ela está melhor em "A Chegada", não pelo trabalho em si, mas porque tem lá mais espaço para desenvolver a personagem que interpreta). Gyllenhaal está na ficção dentro da ficção, onde quem vive a sua esposa é Isla Fisher, um trocadilho no cast, em razão da sua semelhança física com Adams. Fisher tem uma participação menor, ao contrário de outros três magníficos coadjuvantes: Michael Shannon, no melhor papel recente da sua carreira, muitíssimo bem caracterizado por uma magreza surpreendente, e carregando no sotaque texano, tendo como resultado uma interpretação espetacular; Laura Linney, numa participação diminuta, mas incisiva; e Aaron Taylor-Johnson, que vive um lunático de forma vívida, com linguagem corporal agitada (inclusive exibindo-o um pouco, numa cena nada delicada) - é a melhor atuação da sua carreira. Já Armie Hammer se mostra pouco expressivo. Com tantos elementos nesse quebra-cabeça, a montagem, inicialmente dificultosa, obra no sentido de variar os núcleos, isto é, a montagem intercala constantemente as narrativas, algumas vezes adotando um elemento visual como conectivo - personagens tomando banho, por exemplo. A caracterização estética ajuda bastante (Gyllenhaal aparece com e sem barba; e Adams ora bem maquiada e de cabelo liso, ora de cabelo ondulado e praticamente sem maquiagem), mas fato é que esse amálgama só não se torna ininteligível graças ao trabalho do montador (chefiado por Joan Sobel).

Por outro lado, há um claro desnível entre as narrativas, ainda que todas sejam instigantes. A do livro é a maior e melhor em termos de fato, conduzindo o espectador dentro de um suspense enervante. Já as "reais" servem, em verdade, como um estudo de personagem (melhor dizendo, personagens), cuja finalidade é que o público conheça seus perfis psicológicos e consiga entender as suas condutas, inexistindo um grande desenvolvimento no script (em termos de evolução narrativa). Isso não significa singeleza das duas em detrimento da metalinguística, pois todas têm seus predicados. Em termos narratológicos, prepondera a arte (a arte sobre a arte), e não a vida (a arte sobre a vida). Trata-se de um obstáculo que a impecável direção não conseguiu ultrapassar, apesar de todos os esforços de Tom Ford. Depois de um ótimo "Direito de Amar", Ford lapida seu talento inegável em "Animais Fantásticos": sua formação é na moda, portanto, a direção de arte é muito boa (e muito elegante com Susan), isso não significa, porém, que ele não domine o ofício de direção (em geral). Ao revés, os closes nas cenas mais intimistas (e nos diálogos) e os planos mais abertos nos momentos de ação revelam amplo conhecimento da linguagem cinematográfica, notadamente enquadramento. Há um certo exagero na cena inicial, estridente como o grito mais agudo, justificando-se pouco na medida em que o que se segue não tem a mesma energia. Mesmo a crítica aos padrões estéticos destoa do objetivo final - e do elenco repleto de pessoas que estão dentro do padrão, ou seja, é pouca a coerência nesse momento. É um prólogo violento (no sentido metafórico) e inesperado, mas a fita não mantém o ritmo. Apesar da trilha sonora diminuta, a edição de som é cirúrgica, podendo-se ouvir desde os barulhos de vento no deserto e passos na areia até a suave respiração de uma personagem.

Depreende-se que a película de Ford é tecnicamente fenomenal, apesar das ressalvas mencionadas - em especial, merece reiteração o desnível entre as narrativas e o exagero do prólogo. Também o final aberto pode desagradar ao público, pois afasta a didática "moral da história". Isso não é por si só um problema, mas é incômodo para alguns, que preferem maior contundência nos desfechos. Assim, a heterodoxia do longa não serve para todos - mas merece admiração pela ousadia.

ALERTA DE SPOILER: Edward não teve coragem para revê-la, pois seria doloroso por ainda amar Susan? Ou foi uma vingança pessoal, sabedor do sofrimento que a leitura geraria? Ou então ele decidiu seguir em frente, após o feedback dela?

Nenhum comentário:

Postar um comentário