quinta-feira, 7 de abril de 2016

Batman vs. Superman: A Origem da Justiça -- Nem 8, nem 80

Elaborar a crítica de um filme de mais de duas horas e meia e que envolve dois dos maiores ícones culturais da seara dos HQs torna-se um desafio imenso na medida em que existe um contexto preestabelecido (das personagens) e uma legião de fãs ávidos pela verticalização neste universo. A obra é tão vasta que seria possível elaborar uma análise a partir de um exclusivo ponto de vista - por exemplo, a atuação. É por isso que parte-se da premissa de que, na presente crítica de "Batman vs. Superman: A Origem da Justiça" (BvS), serão abordados aspectos técnicos relacionados ao filme, não às personagens em si.

Os trailers apresentaram tantos spoilers que quase fizeram do longa um fracasso, pois pouco do que é visto na película - em um 3D dispensável e que se torna cansativo - chega a ser novidade. É paradoxal perceber que a síntese da trama é minúscula: o Batman vê a destruição ocorrida no embate entre Superman e Zod (em "O Homem de Aço", em 2013), iniciando sua revolta contra o kriptoniano, decidindo enfrentá-lo para mostrar que ele não é unstoppable como parece para a maioria dos humanos - ou seja, o Cavaleiro das Trevas não tem medo algum e mostra ao Homem de Aço que exista quem possa enfrentá-lo e mesmo levá-lo à derrota. Artificialmente, são inseridas subtramas relacionando dois vilões, uma heroína (bastante heroica, diga-se de passagem) coadjuvante e, en passant, três outros heróis que participarão do filme da Liga da Justiça. Há que se reconhecer que BvS exerce bem o papel de ponte entre tudo que é anterior ao embate entre os dois - o já mencionado "O Homem de Aço", o futuro filme solo da Mulher Maravilha e o pretérito subentendido dos demais heróis (Batman, Aquaman, Flash e Ciborgue) - e a formação da Liga da Justiça. Sendo este o objetivo, ele foi cumprido, ainda que se reconheça tratar-se de um pretexto para a megalomania cinematográfica no subgênero. A Marvel já descobriu que reunir heróis é sucesso quase certo, obrando para isso em estilo próprio, com leveza e bom humor. É por isso que a DC/Warner acerta ao não imitar a concorrente e seguir uma linha de realismo e seriedade com fundo sombrio, basta ser coerente com este ponto de partida. Talvez o Superman fique demasiado sombrio, mas, como ele está no início da sua "carreira", há plausibilidade. O segundo objetivo é agradar aos fãs, o que se concretiza, ainda que o produto final não seja o ideal.

Dito isto, o maior (mas não único) equívoco de BvS é o fato de não ter sido enxuto. Por exemplo, o prólogo consiste em uma cena desnecessária da morte do casal Wayne (Thomas e Martha, pais de Bruce), que, se cortada, não faria falta e ainda economizaria um tempo valioso (que permitiria desenvolver melhor outro aspecto). Teria sido muito melhor poupar o espectador desta repetição, ou, se mencioná-la, bastaria um diálogo breve entre Bruce e Alfred. Por outro lado, é ótima a cena em que Bruce assiste aos eventos catastróficos que se passaram em Metrópolis, funcionando como link para o futuro duelo entre Batman e Superman. Como catapulta narrativa, é fundamental, mas, em termos de filmagem, teria sido melhor a câmera subjetiva (talvez fosse exigir técnica demais do Snyder...). Conforme se verá mais adiante, se o filme fosse abreviado, o produto final seria muito superior. Tornou-se um pouco cansativo por adiar demais o embate dos heróis e segurar a história com uma introdução demasiadamente lenta se comparada com o ritmo acelerado das sequências finais.

A isto se relaciona ao frágil roteiro, repleto de furos e elementos de difícil compreensão. São vários os questionamentos decorrentes do longa, ainda mais para quem não tem conhecimento do conteúdo das HQs dos heróis. Isto é, é notório que o filme é dirigido mais (não exclusivamente) aos fãs das HQs, e os agrada, mas exagera no mistério e na falta de explicações. Por que havia kriptonita na Terra? Qual a origem do nome "Português Branco"? Como a Mulher Maravilha se infiltrou na casa do Lex Luthor? Enfim, são tantos furos de roteiro que a narrativa fica comprometida - isso sem contar outros, ainda mais graves (e que revelariam spoilers em demasia). O próprio motivo pelo qual os heróis cessam a luta não é crível (na verdade, é bem idiota). Por outro lado, roteiro frágil não é sinônimo de ausência de roteiro ou roteiro caótico, pois este não é o caso. Bastante perdida, existe uma sequência perceptível de acontecimentos com começo, meio e fim (mais na perspectiva do Batman, por assim dizer, priorizado narrativamente) e há uma conexão com os universos particulares dos heróis. Há que se reconhecer que não era fácil conectar o pretérito desconhecido de Batman e Mulher Maravilha ao pretérito já conhecido do Homem de Aço. A teia é complexa, não se pode negar. Também merece reconhecimento o fato de que, em BvS, existe uma história, ainda que falha, que subsiste por si só, isto é, o plot não serve de pretexto para as cenas de ação (que, por sinal, até que são curtas se comparadas com a duração total do longa), o que dá a entender o objetivo de não ser mais um blockbuster qualquer de ação desenfreada estilo Michael Bay. De Michael Bay o Zack Snyder tem muito pouco, e comparar Snyder a Bay é ofensivo para o mentor de "300" e "Watchmen". Snyder tem uma narrativa e sabe que ela é a prioridade, ainda que se esmere na ação. Ainda sobre o roteiro, duas personagens merecem destaque por envolverem subtramas que o enriquecem: Lois Lane, que indubitavelmente é engrenagem narrativa, mesmo atrapalhando Superman mais que o ajudando; e a Senadora Finch (Holly Hunter, em boa atuação), que faz boa dupla com Lex Luthor e rende bons momentos (embora sobrecarregue o plot).

A direção de Zack Snyder tem altos e baixos. Não é o descalabro que alguns afirmam, porém, está distante do ideal. Sim, George Miller comandando a produção de Liga da Justiça seria melhor. De todo modo, Snyder tem um estilo próprio de introspecção, sobriedade e realismo sui generis, sendo fiel a tais características. A introspecção significa conceder um ar sombrio e reflexivo, mais pensamento e menos (não ausência de) ação. Conecta-se à sobriedade na medida que a melancolia não dá vazão a elucubrações fantásticas. Aliás, embora o universo seja fantástico, ele imprime seu realismo pessoal, pois quer tornar a história verossímil - o extraordinário é explicado pelo elemento alienígena. Quem critica Snyder ignora a competência indubitável ao filmar as sequências de ação, cujo ápice é a luta do Batman em seu sonho, visto em 360 graus. Ok, o Apocalypse (Doomsday) foi feito em um CGI ruim, mas isso já é quase marca registrada da DC ("Lanterna Verde" que o diga). Piadas à parte, isso não compromete o longa.

Snyder aposta no contra-plongée para filmar o Superman, que aparece sempre no alto, com sua capa simulando asas, e um ar de divindade e distanciamento. Há uma única cena romântica para destacar o caráter humano de Clark, de sorte que o divino do herói é constantemente realçado, como já feito em "O Homem de Aço". São poucas as alegrias da personagem, mas seu caráter heroico é facilmente visível. Já o Batman foi uma enorme decepção. Parecendo um moleque mimado, no melhor estilo desprezível de "bandido bom é bandido morto" (matar não é um problema per si, pois é este o perfil seguido, que tem referência nos quadrinhos), trata-se de um herói nada heroico e excessivamente irracional. Não é um Batman inteligente e estrategista (aliás, ele é péssimo na estratégia, por exemplo, colocando armadilhas inócuas para o Homem de Aço), pois só entende a linguagem da porrada, chegando a torturar pessoas, marcando-as, para depois concluir sua inutilidade nas investigações. Ao menos ele é um detetive? Sim, mas um detetive incompetente, pois é sempre encontrado ao investigar (tanto na cena de tortura quanto na casa do Lex). Ele admite que é um criminoso, mas Alfred, que é o cérebro do morcego irracional, discorda: enfrentar o Superman não é o mesmo que enfrentar o Coringa. Batman tem apenas os músculos e o nome, o cérebro é de Alfred, que participa também da ação, ainda que à distância (como ao controlar a nave). A atuação de Jeremy Irons é muito boa, como se espera de um ator já consagrado. E mais: é um Batman covarde, já que se esconde do Apocalypse por não ter chances contra ele. As atuações da dupla são competentes: Henry Cavill é o mesmo do filme anterior, tendo que dividir mais o espaço e não apresentando acréscimo substancial na(s) personagem(ns); Ben Affleck driblou os críticos e provou que tem alguma competência mínima como ator - apesar de um tique de ranger os dentes na ação. Por sua vez, o vilão Lex Luthor dividiu opiniões. É um Luthor jovial e um pouco atlético (joga basquete), com falas em metáforas e onomatopeias - a metáfora dos demônios vindos do céu anunciam o futuro da DC no cinema, mas quem não tem grande conhecimento dos quadrinhos não entenderá bem. Contudo, o perfil é fiel ao manter as características marcantes de ser manipulador e inteligente. É o responsável, inclusive, pelos questionamentos explícitos sobre o caráter divino do Superman - em última análise, questiona as divindades conectas à fé das pessoas ao afirmar que ser bom e todo-poderoso ao mesmo tempo é um paradoxo. A atuação de Jesse Eisenberg é propositadamente histriônica, quase um overacting, o que desagradou muita gente, mas tem a virtude da originalidade. Não é ruim, apenas talvez não seja do agrado de uma parcela que prefere um vilão menos hiperativo, falante e insano. Como já é quase do senso comum, a Mulher-Maravilha rouba a cena nos breves momentos em que aparece - provavelmente seu encanto resida justamente no fato de aparecer apenas em doses tópicas. O criticado mistério em torno da personagem é plausível, afinal, em breve virá um filme solo, que, supõe-se, resolverá as "pontas soltas". A ideia é justamente deixar pistas, sem comprometer o seu perfil em relação à sua participação. Embora BvS tenha sido lançado antes, seu filme solo, cronologicamente falando, é anterior. Dito tudo isto, há outra verdade inescapável: a reunião da trindade leva qualquer fã ao delírio. O filme podia ser ruim - é apenas medíocre, no máximo, razoável -, mas dificilmente seria uma decepção grande como "Homem de Ferro 3" e "Lanterna Verde" (para comparar com outros filmes de heróis).

Dois recursos técnicos merecem menção pela qualidade. Os figurinos são ótimos: o visual do Batman é incrível, o Superman é o mesmo de antes, e a Mulher-Maravilha, por dividir espaço com o alter-ego Diana Prince, é maleável com acertos constantes nas opções. Até mesmo Lex Luthor tem vestimentas interessantes - a melhor, uma camiseta branca do que parece um macaco em um triciclo. Ainda melhor é a trilha sonora, merecendo destaque a inédita (e sensacional) "Is She With You?" (google it) e a clássica "Everytime we say goodbye".

Dois acertos, um erro enorme: a montagem de BvS é inacreditavelmente problemática, quase caótica. Se os equívocos outrora mencionados eventualmente não comprometeram o resultado, é aqui que houve comprometimento enorme. Desde alguns erros menores (como o Batman se livra da armadura de ferro em poucos segundos para entrar na nave?) até cenas totalmente desnecessárias - em especial os sonhos de Bruce Wayne, que agradam aos fãs por fazerem referência ao universo DC, sem acrescentar na narrativa, inflando o plot e dificultando a compreensão para a maioria do público (uma de terror de péssimo gosto até destoa do resto) -, o trabalho de montagem é horrível. Há uma sequência em que Luthor entra na nave de Zod e negocia com o Senador. Graças à montagem, ela fica confusa, justamente algo feito para ser simples. Martha Kent repete a famosa "people hate what they don't understand" em uma cena inserida apenas para aumentar o tempo de Diane Lane na tela. Outra cena desnecessária é a do retorno de uma personagem falecida. Vale dizer, são tantas cenas desnecessárias e confusas que a montagem infla o filme e descaracteriza a simplicidade presente no subgênero - ressalte-se que, nos filmes de heróis, a regra é um maniqueísmo claro, e ainda que a opção seja impor maior requinte, tornar a obra ininteligível em algumas partes não ajuda em nada.

"Batman vs. Superman: A Origem da Justiça" é um filme que permite infindáveis reflexões e conclusões sobre cada aspecto técnico. Como se percebe, o filme tem sim algumas virtudes e alguns erros, daí porque está no nível medíocre (sendo bonzinho, razoável). Não é o melhor filme de herói da época, mas está anos-luz a "Homem-Aranha 3" ou "Quarteto Fantástico", por exemplo. Se a DC permanecer fiel ao seu estilo sério (sem imitar a Marvel), reduzindo a vontade de injetar à força referências aos HQs (pois apenas os fãs ficam satisfeitos) e criando uma narrativa minimamente crível, é possível ter bons frutos com a Liga da Justiça. As aparições de Flash, Ciborgue e Aquaman indicam um plano ambicioso, que parece ser de curto prazo. A pressa é inimiga da perfeição. Por outro lado, BvS teve uma produção longa, deixando a desejar quando lançado. Ou seja, a depender da dedicação para os próximos projetos, simplificando o emaranhado que vem se formando, é possível que Liga da Justiça seja cinematograficamente melhor, quiçá um top 5 de filmes de heróis. Basta atentar sobre os erros pretéritos. Aliás, a saída de Zack Snyder, se ocorrer (como querem alguns), será benéfica, não por ele não ter qualidade, mas por arejar o trabalho criativo da área. George Miller já esteve próximo. É a melhor opção. Basta a DC/Warner concluir o óbvio: é possível lucrar e ser artisticamente bom, e a inovação pode ser um caminho.

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