sábado, 30 de dezembro de 2017

Roda Gigante -- A monogamia morreu

Woody Allen é um patrimônio do cinema, não um mero cineasta. Responsável por clássicos como "Noivo Neurótico, Noiva Nervosa" e "A Rosa Púrpura do Cairo", ele recentemente brindou a sétima arte com obras-primas como "Blue Jasmine" e filmes muito bons como "Meia-Noite em Paris". Porém, RODA GIGANTE é o pior filme da carreira recente de Allen.

De início, um enredo clichê de triângulo amoroso (a rigor, surgem dois triângulos amorosos). Já está tão ultrapassado que o próprio cineasta o utilizou ano passado, em "Café Society" (que é infinitamente superior a "Roda Gigante"). Se ao menos a abordagem fosse mais original, valeria a pena retomar esse argumento, mas não, o roteiro é construído de uma maneira extremamente previsível, com uma narrativa que beira o entediante, de tão óbvia no seu desenvolvimento. É verdade que a inteligência de Woody Allen está lá camuflada, como se verifica na primeira conversa entre Ginny, Humpty e Carolina, estabelecendo um conflito nuclear na trama sem mastigar para o espectador. Porém, o uso da narração voice over (intercalando com a quebra da quarta parede) é deplorável, mais ainda considerando que o narrador é Justin Timberlake, certamente o pior do elenco. Sua falta de naturalidade nas falas (tanto nos diálogos quanto nas narrações) é assustadora, parecendo ter tido aula de atuação com o Murilo Benício. O que Justin Timberlake está fazendo em um filme de Woody Allen? É inegável: o aspirante a ator estragou ainda mais o filme.

James Belushi e Juno Temple também não ajudam. O primeiro é de interpretação monotônica (só consegue expressar raiva); a segunda, pavorosamente insossa. Já Kate Winslet é um alento, fazendo do melodrama cinquentista um trabalho soberbo de interpretação. A atriz flutua entre o estresse e o alívio, o ciúme e o desespero, fazendo com que sentimentos difíceis de expressar soem naturais em tão curta duração - afinal, é apenas um filme (e é por isso que comparações com séries são sempre injustas). Todas as personagens do plot têm sua complexidade, mas Ginny é dotada de uma personalidade mais realista e muito mais desenvolvida (não à toa, é a única que se relaciona constantemente com todas as personagens principais). Da mulher insegura - seja pelo simples ciúme, seja pela idade (que, como ficou claro, sempre foi uma questão incômoda) - à mãe indecisa, o papel tem mais camadas e é mais desafiador.

Alia-se a tudo isso uma técnica que nunca é censurável em um filme de Woody Allen. A filmagem é irrepreensível, dos enquadramentos à montagem: a melhor cena é um diálogo entre Ginny e Mickey na casa da primeira, um plano longo em que o diretor faz closes no rosto dela quando suas falas são mais longas. O figurino é mais modesto do que em outros longas, mas consegue ser representativo - por exemplo, Ginny usa branco quando enfim encontra a sua paz. O design de produção é razoável no retrato da Coney Island da década de 1950 e a fotografia é bem participativa no uso de filtros e luzes azuis nas cenas noturnas e alaranjadas nas cenas taciturnas. Ainda, a trilha sonora não é muito bem escolhida, já que usa ritmos de jazz alegres demais para uma película que evoca tamanha melancolia. Exemplo é e belíssima "Kiss of Fire", de Georgia Gibbs, originalmente um tango ("El Choclo", de Ángel Villoldo): apesar da letra compatível, a melodia é muito empolgada para um longa que cita expressamente as tragédias gregas.

Se a construção narrativa é falha, semanticamente, o roteiro é digno da genialidade do seu responsável (concordando ou não com a mensagem). Como de costuma, verifica-se uma amálgama temática, que vai desde a maneira pela qual o rompimento do relacionamento dos pais pode reverberar na psique dos filhos (o exagero do menino piromaníaco foi inserido para dar humor à trama) até violência doméstica. Existe também uma menção à psicanálise freudiana, através da referência ao Complexo de Édipo. Há muito conteúdo inteligente no texto, apesar de algumas subtramas ficarem sem soluçãoEntretanto, o "resumo da ópera" é a visão segundo a qual a monogamia morreu. De acordo com o filme, os relacionamentos afetivos estão sujeitos a inúmeras instabilidades inerentes aos seres humanos, que são fracos por natureza e acabam cedendo, por mais que se arrependam depois. Ou pior, podem até saber que fazem uma escolha equivocada quanto ao parceiro afetivo, todavia, teimosos, preferem insistir no erro. Inicia-se assim um interminável ciclo de infelicidade, também sujeito às intempéries, que é fadado a dar errado. Isto é, o desfecho dos relacionamentos afetivos é o rompimento, para um novo início (e assim sucessivamente), ou a infidelidade. A "roda gigante" é justamente essa: não há perenidade alguma na vida afetiva. Concordando ou não com essa visão, a reflexão é válida. E também vale uma ressalva feita em críticas anteriores: essa interpretação não exclui outras.

"Roda Gigante" é uma versão minúscula de Woody Allen, que se confunde um pouco com a vida pessoal do cineasta (segundo setores da psicologia, os escritores fazem isso de maneira inconsciente). O que é marcante no filme não é (a mensagem) da morte da monogamia, mas a interpretação magistral de Kate Winslet - embora nenhuma delas seja novidade.

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