"Psicose", "Seven", "Clube da Luta"... são muitos os thrillers que se tornaram notórios também por suas reviravoltas surpreendentes (sem olvidar, evidentemente, das suas virtudes inquestionáveis). Suspense ou terror, o filme que reserva surpresas ao espectador costuma ser mais charmoso, ao menos para o público que gosta de ser tomado pela surpresa. Mais ainda quando envolve um crime para ser solucionado, como "O Silêncio dos Inocentes" e "O Segredo dos Seus Olhos". Nesse caso, agrada o espectador que gosta de ser desafiado. CONTRATIEMPO (no Brasil, "Um Contratempo") pode não ter a qualidade dos clássicos mencionados, mas tem a mesma veia intelectual que apenas os grandes suspenses instigantes conseguem ter.
Na trama, o advogado Adrián Doria acorda em um quarto de hotel, após um golpe na cabeça, encontrando sua amante morta no banheiro e coberta com várias notas de dinheiro. Sua vida de sucesso fica prestes a desmoronar, pois Doria não consegue convencer ninguém da sua inocência, já que o quarto do hotel é trancado por dentro, sem nenhuma maneira de entrar ou sair. Sua única saída parece ser a melhor advogada de defesa da Espanha, em seu último caso, a experiente Virginia Goodman. Fica então proposto o primeiro desafio ao espectador: como o crime realmente aconteceu? Provavelmente até mesmo Agatha Christie teria dificuldades em solucionar.
De um lado, Doria sustenta a própria inocência, mas não traz elemento algum para corroborar a própria tese. A polícia chegou logo após o evento, como o assassino poderia ter saído, se não fosse o próprio Doria? Por outro lado, a ideia de que foi ele quem matou a amante parece simplista e incoerente, afinal, eles eram amantes. Com vários flashbacks, o filme apresenta a conexão entre duas mortes, dando pistas que, porém, podem facilmente enganar. E é isso que o filme faz melhor: ludibriar o espectador. Quando uma questão parece estar solucionada, a inteligente advogada mostra que nada é tão simples como pode parecer, surgindo uma constante imprevisibilidade no texto que lhe confere camadas cada vez mais complexas. O script consegue como poucos inserir variáveis inimagináveis na narrativa - como o pai de uma das pessoas mortas - e, ainda mais impressionante, ligar os eventos pretéritos sem deixar lacunas ou pontas soltas. Ao contrário: no final, tudo faz sentido. Se visto uma segunda vez, o filme revela o quão óbvias as pistas eram (no melhor estilo "O Sexto Sentido").
Entretanto, há um equívoco na dosagem das reviravoltas. Os dois primeiros atos funcionam como uma montagem do quebra-cabeças instaurado, enquanto o terceiro ato parece uma brincadeira para manipular o público, quiçá confundi-lo a ponto de arriscar tornar o longa confuso ao final, sob pretexto de surpreender à Hitchcock. Provavelmente por empolgação, o roteirista Oriol Paulo escreveu "Contratiempo" com plot twists rocambolescos e que, se adiantados na trama (para o segundo ato), soariam menos forçados. O que importa é a naturalidade, que não se fez presente ao final (isto é, no terceiro ato) - exceto, talvez, no desfecho (leia-se, na solução do filme como um todo).
Com frases de efeito, a advogada Virginia Goodman é um show graças à estupenda atuação de Ana Wagener. Doria não sabe, mas quando Goodman diz para ele que "não haverá salvação sem sofrimento" e que ele não é mais esperto que ela, não se trata de um blefe, mas de um fato que ele descobrirá com o tempo. O custo para manter o sucesso seria mais alto que ele imaginava. Coube a Mario Casas o papel de protagonista, o que ele exerce de forma competente, ao contrário de Bárbara Lennie, intérprete de Laura, a amante falecida, que não consegue lidar com as finas nuances da personagem. O papel é difícil, mas o recurso adotado pela produção em cortar o cabelo da atriz para representar o twist do arco dramático da personagem não foi suficiente para esconder a falta de habilidade da artista. José Coronado faz um coadjuvante bem interessante, interpretado impecavelmente pelo ator.
"Contratiempo" é apenas o segundo trabalho cem por cento autoral de Oriol Paulo. Após co-roteirizar "Os Olhos de Júlia", Paulo foi roteirista e diretor do razoável "El Cuerpo", de 2012. O longa conseguiu ser original, tendo muito êxito no suspense e com um grand finale, contudo, a atmosfera de terror se revelou desnecessária. Comparativamente, Paulo evoluiu bastante de um trabalho para outro. O roteiro da película de 2016 é mais engenhoso, ademais, a direção abandona a sugestão de terror que havia no filme de 2012. Desta vez, ele investe em uma estética noir e uma climatização de suspense, por exemplo pela trilha sonora instrumental. Nesse sentido, o prólogo é eloquente mesmo sem falas, transmitindo tensão graças à interpretação (de Wagener) e à direção. Em seguida, Oriol Paulo utiliza um recurso sagaz de linguagem cinematográfica: ao invés de adotar mecanismos tradicionais de narração, cria um pretexto verossímil para tirar uma personagem de cena para situar outra - bem como o espectador - através do noticiário da televisão. Com isso, em poucos segundos o argumento da obra fica bem delineado e de maneira fluida, o que revela uma direção inteligente. A isso tudo se alia a competente fotografia de Xavi Giménez (diretor de fotografia de "O Operário", aquele filme no qual o Christian Bale fica assustadoramente magro), investindo em cenários gélidos e escurecidos nos momentos mais sombrios.
É óbvio que CONTRATIEMPO não chega no nível dos clássicos mencionados. Assim como Oriol Paulo não alcançou, ainda, um status de Buñuel ou de Almodóvar. No entanto, considerando a já boa qualidade e os aprimoramentos, parece parcimonioso afirmar que o cineasta pode trazer obras ainda melhores - e, garantidamente, as duas que já produziu são melhores que a maioria dos enlatados hollywoodianos tais como a franquia Transformers. O futuro dirá se Paulo vai se firmar como um grande nome do tímido cinema espanhol. Sua segunda película é um modesto encontro entre Agatha Christie e Alfred Hitchcock, talvez ambos iniciando suas carreiras. Faz sentido, afinal, Oriol Paulo também está no início da dele.
(P.S.: o filme está disponível no Netflix!!)
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Dedico esta crítica aos amigos Deborah e Leonel, fãs do cinema espanhol.
(P.S.: o filme está disponível no Netflix!!)
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Dedico esta crítica aos amigos Deborah e Leonel, fãs do cinema espanhol.
Muito boa resenha! Bem como os seus amigos, também sou fã do cinema espanhol.
ResponderExcluirEliziane Dias