quarta-feira, 19 de julho de 2017

Um Contratempo -- Agatha Christie encontra Alfred Hitchcock

"Psicose", "Seven", "Clube da Luta"... são muitos os thrillers que se tornaram notórios também por suas reviravoltas surpreendentes (sem olvidar, evidentemente, das suas virtudes inquestionáveis). Suspense ou terror, o filme que reserva surpresas ao espectador costuma ser mais charmoso, ao menos para o público que gosta de ser tomado pela surpresa. Mais ainda quando envolve um crime para ser solucionado, como "O Silêncio dos Inocentes" e "O Segredo dos Seus Olhos". Nesse caso, agrada o espectador que gosta de ser desafiado. CONTRATIEMPO (no Brasil, "Um Contratempo") pode não ter a qualidade dos clássicos mencionados, mas tem a mesma veia intelectual que apenas os grandes suspenses instigantes conseguem ter.

Na trama, o advogado Adrián Doria acorda em um quarto de hotel, após um golpe na cabeça, encontrando sua amante morta no banheiro e coberta com várias notas de dinheiro. Sua vida de sucesso fica prestes a desmoronar, pois Doria não consegue convencer ninguém da sua inocência, já que o quarto do hotel é trancado por dentro, sem nenhuma maneira de entrar ou sair. Sua única saída parece ser a melhor advogada de defesa da Espanha, em seu último caso, a experiente Virginia Goodman. Fica então proposto o primeiro desafio ao espectador: como o crime realmente aconteceu? Provavelmente até mesmo Agatha Christie teria dificuldades em solucionar.

De um lado, Doria sustenta a própria inocência, mas não traz elemento algum para corroborar a própria tese. A polícia chegou logo após o evento, como o assassino poderia ter saído, se não fosse o próprio Doria? Por outro lado, a ideia de que foi ele quem matou a amante parece simplista e incoerente, afinal, eles eram amantes. Com vários flashbacks, o filme apresenta a conexão entre duas mortes, dando pistas que, porém, podem facilmente enganar. E é isso que o filme faz melhor: ludibriar o espectador. Quando uma questão parece estar solucionada, a inteligente advogada mostra que nada é tão simples como pode parecer, surgindo uma constante imprevisibilidade no texto que lhe confere camadas cada vez mais complexas. O script consegue como poucos inserir variáveis inimagináveis na narrativa - como o pai de uma das pessoas mortas - e, ainda mais impressionante, ligar os eventos pretéritos sem deixar lacunas ou pontas soltas. Ao contrário: no final, tudo faz sentido. Se visto uma segunda vez, o filme revela o quão óbvias as pistas eram (no melhor estilo "O Sexto Sentido").

Entretanto, há um equívoco na dosagem das reviravoltas. Os dois primeiros atos funcionam como uma montagem do quebra-cabeças instaurado, enquanto o terceiro ato parece uma brincadeira para manipular o público, quiçá confundi-lo a ponto de arriscar tornar o longa confuso ao final, sob pretexto de surpreender à Hitchcock. Provavelmente por empolgação, o roteirista Oriol Paulo escreveu "Contratiempo" com plot twists rocambolescos e que, se adiantados na trama (para o segundo ato), soariam menos forçados. O que importa é a naturalidade, que não se fez presente ao final (isto é, no terceiro ato) - exceto, talvez, no desfecho (leia-se, na solução do filme como um todo).

Com frases de efeito, a advogada Virginia Goodman é um show graças à estupenda atuação de Ana Wagener. Doria não sabe, mas quando Goodman diz para ele que "não haverá salvação sem sofrimento" e que ele não é mais esperto que ela, não se trata de um blefe, mas de um fato que ele descobrirá com o tempo. O custo para manter o sucesso seria mais alto que ele imaginava. Coube a Mario Casas o papel de protagonista, o que ele exerce de forma competente, ao contrário de Bárbara Lennie, intérprete de Laura, a amante falecida, que não consegue lidar com as finas nuances da personagem. O papel é difícil, mas o recurso adotado pela produção em cortar o cabelo da atriz para representar o twist do arco dramático da personagem não foi suficiente para esconder a falta de habilidade da artista. José Coronado faz um coadjuvante bem interessante, interpretado impecavelmente pelo ator.

"Contratiempo" é apenas o segundo trabalho cem por cento autoral de Oriol Paulo. Após co-roteirizar "Os Olhos de Júlia", Paulo foi roteirista e diretor do razoável "El Cuerpo", de 2012. O longa conseguiu ser original, tendo muito êxito no suspense e com um grand finale, contudo, a atmosfera de terror se revelou desnecessária. Comparativamente, Paulo evoluiu bastante de um trabalho para outro. O roteiro da película de 2016 é mais engenhoso, ademais, a direção abandona a sugestão de terror que havia no filme de 2012. Desta vez, ele investe em uma estética noir e uma climatização de suspense, por exemplo pela trilha sonora instrumental. Nesse sentido, o prólogo é eloquente mesmo sem falas, transmitindo tensão graças à interpretação (de Wagener) e à direção. Em seguida, Oriol Paulo utiliza um recurso sagaz de linguagem cinematográfica: ao invés de adotar mecanismos tradicionais de narração, cria um pretexto verossímil para tirar uma personagem de cena para situar outra - bem como o espectador - através do noticiário da televisão. Com isso, em poucos segundos o argumento da obra fica bem delineado e de maneira fluida, o que revela uma direção inteligente. A isso tudo se alia a competente fotografia de Xavi Giménez (diretor de fotografia de "O Operário", aquele filme no qual o Christian Bale fica assustadoramente magro), investindo em cenários gélidos e escurecidos nos momentos mais sombrios.

É óbvio que CONTRATIEMPO não chega no nível dos clássicos mencionados. Assim como Oriol Paulo não alcançou, ainda, um status de Buñuel ou de Almodóvar. No entanto, considerando a já boa qualidade e os aprimoramentos, parece parcimonioso afirmar que o cineasta pode trazer obras ainda melhores - e, garantidamente, as duas que já produziu são melhores que a maioria dos enlatados hollywoodianos tais como a franquia Transformers. O futuro dirá se Paulo vai se firmar como um grande nome do tímido cinema espanhol. Sua segunda película é um modesto encontro entre Agatha Christie e Alfred Hitchcock, talvez ambos iniciando suas carreiras. Faz sentido, afinal, Oriol Paulo também está no início da dele.

(P.S.: o filme está disponível no Netflix!!)

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Dedico esta crítica aos amigos Deborah e Leonel, fãs do cinema espanhol.

Um comentário:

  1. Muito boa resenha! Bem como os seus amigos, também sou fã do cinema espanhol.

    Eliziane Dias

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