quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Lion - uma jornada para casa -- Aposta na emoção (e vence)

Um mesmo enredo pode render filmes cujo itinerário varia entre o cerebral e o emocional. Isto é, o argumento de uma obra pode ser conduzido por um caminho racional, inclusive extremo, como documentário, ou mais dramático, como um drama propriamente dito. LION - UMA JORNADA PARA CASA podia ser um documentário, mas a produção preferiu apostar em altas doses de emoção.

O protagonista é Saroo, um indiano que, com apenas cinco anos, se perde do irmão e acaba sendo adotado por um casal australiano. Muitos anos depois, ele decide procurar sua família biológica. Trata-se de uma rara ocasião em que o subtítulo brasileiro não é indecente: o enredo consiste na jornada do protagonista em busca da sua família, ou seja, é realmente um filme de jornada de um herói. Contudo, o subtítulo é redutor ao usar a expressão "casa", pois o que o protagonista quer é retornar para a sua família biológica, não propriamente para a sua casa. Não obstante, "Lion" seria insuficiente (ainda que poeticamente mais belo), pois a explicação do título real aparece apenas no final do filme.

E que história incrível o filme tem para contar! Só não é inacreditável porque é real. No final da década de 1980, Saroo é apenas mais uma criança pobre na Índia. Cerca de vinte anos depois, o garoto é um homem que corajosamente busca as suas origens. É justamente onde repousa a erupção de sentimento na qual o roteiro consiste. Primeiro, uma infância paupérrima. Depois, afastamento acidental dos familiares e do lar. Solidão, desespero... recomeço. A vida segue, mas o herói busca uma espécie de retorno. Não é caso de melodrama, mas sim de uma história realmente tocante que se revela muito maior que o filme.

O diretor Garth Davis tem em mãos um material sublime, fazendo dele um produto "apenas" ótimo.Na verdade, é no roteiro que "Lion" pode ser considerado maravilhoso. Reitera-se que o enredo incrível é terreno fértil, porém, o primeiro e o terceiro ato são sensacionais (o segundo, frustrante) - se fosse apenas por eles, a fita concorreria ao Oscar de Melhor Filme com chances de desbancar "La La Land" (na prática, é figurante entre os indicados). Davis foi inteligente ao aproveitar o que há de melhor. Em termos gerais, a direção acerta na escolha dos planos abertos, usando bem os cenários e favorecendo a espetacular fotografia, conferida já no prólogo. Também há acerto ao ancorar-se no real, pelo menos em três aspectos: são vários os artistas de origem indiana, tornando mais fidedigna a película; o elenco, durante boa parte do filme, se comunica pelos idiomas e dialetos indianos (a legenda é essencial); e há um trabalho da produção no sentido de cumprir sua função social, algo que merece aplausos - para mais detalhes, melhor conferir a obra (sim, isso também é cinema). Por outro lado, Davis é burocrático ao seguir a cartilha dos filmes baseados em histórias reais, tal qual fez Mel Gibson em "Até o Último Homem".Exemplo da burocracia é a indicação constante dos locais e anos em que as cenas ocorrem, algo que poderia ser dispensado, exceto nas elipses mais longas (quem quer detalhes pode ir atrás depois da sessão).

Aliás, as elipses são o grande problema do filme. Melhor dizendo, não as elipses em si, mas a sua consequência. Como dito, o primeiro e o terceiro ato são sensacionais e isso não é por acaso, pois são neles que a narrativa não dá tantos saltos. Sem incorrer em spoilers, é possível explicar de forma mais precisa. No primeiro ato, o público conhece o protagonista Saroo, conhece o seu modo de vida a assiste à desconstrução da sua realidade quando ele se perde do irmão mais velho. As sequências são de emoção intensa, sendo ainda mais comovente ao recordar que aquilo aconteceu na vida real (indo não muito além, acontece muito em vários lugares do mundo). Como a proposta é enxergar na perspectiva da criança, a direção retira o foco das pessoas que estão ao redor de Saroo e fixa a câmera na altura dos seus olhos, deixando à margem do centro da tela os mendigos dormindo no chão, pessoas com roupas sujas e a pobreza do local. A riqueza técnica é notória aqui, podendo se aproximar muito da personalidade de Saroo - questionado sobre o nome da mãe, a resposta, sem vacilo, foi a mais verdadeira ("qual o nome da sua mãe?" "Mãe"). Há momentos aterrorizadores com uma polícia inerte e pessoas com finalidades escusas, o que a pouca iluminação amplia - a sensação é, realmente, de preocupação. O primeiro ato pode ser resumido em uma só palavra: comoção.

Entretanto, o segundo ato é desinteressante e quebra o ritmo penetrante do início. É a parcela do filme em que a direção não consegue demonstrar a mesma destreza, fazendo apenas o básico. Também consiste no momento em que as elipses são mais incômodas, com um pulo de vinte anos e sequências que não são eficazes para demonstrar quem Saroo se tornou. A preocupação é mais voltada em demonizar uma das personagens do que expor a personalidade do protagonista - sendo mais rigoroso, o estudo de personagem se esvai para uma narrativa pobre, que deveria, no mínimo, se alongar para que o público conheça Saroo melhor. Por exemplo, os pais adotivos o ensinam a pilotar barco e a jogar críquete. É pouco! Como era seu relacionamento com os colegas na escola? E o cotidiano em casa? Por que ele escolheu a profissão que escolheu? Tudo isso são lacunas que refletem as longas elipses. Pior, o texto sofre automutilação ao inserir um relacionamento artificial e superficial que nada acrescenta à trama - passando a sensação de entender que, para fazer sucesso, um romance é indispensável para um longa-metragem. A namorada de Saroo é descartável e desconfortável em nível tal que as piadas deslocadas ficam esquecidas (como quando as crianças indianas aprendem inglês) - esquecidas também por serem dotadas de fofura sem igual, é verdade.

Quando o filme se torna comum e esquecível, começa o fenomenal terceiro ato, simplesmente arrebatador. É o momento que faz valer a sessão, um verdadeiro grand finale que forma o desfecho que a jornada merece. Como obra artística, o filme representa um maremoto de emoções enquanto assistido e sugestões para refletir após assistir. É impossível não se emocionar quando o pequeno Saroo limpa o choro da sua mãe, inevitável não se encantar com o sorriso contagiante do garoto e inviável não sentir alívio quando a miniatura de herói conhece seus adotantes. A alegria do casal, vivido por Nicole Kidman e David Wenham, é sensível através da tela, conduzindo a interpretação de ambos. Kidman é mais dedicada (até porque é melhor), rendendo cenas de sensibilidade notável (o ápice se dá quando ela explica a Saroo, já adulto, sobre a decisão de adotar). O mesmo não se pode dizer de Rooney Mara, atriz de talento desperdiçado em um papel insosso. Dev Patel também sofre com o declínio do segundo ato, mas passa pela redenção no desfecho - o festejado ator ganha holofotes por ser exótico, contudo, não se pode negar seu talento. Todavia, é Sunny Pawar a grande estrela: o ator mirim é tão convincente que faz com que o espectador não apenas torça por ele, como também queira adotá-lo. Analogamente, é o que Jacob Tremblay fez em "O Quarto de Jack".

Na perspectiva mais técnica, a montagem se enriquece com flashbacks oníricos exibidos em algumas sequências, não se podendo ter certeza se é pura imaginação de Saroo ou se é representação do real. O trabalho sonoro também foi feito com esmero: a edição de som nos ruídos do trem é de uma imersão formidável, aliada a uma mixagem exemplar que reúne os sons de trilhos, carga, gritos e, claro, das músicas. A trilha sonora é bem eclética, com ritmos característicos da Índia, instrumentos de corda e piano e até mesmo um pop atual ("Never Give Up", da Sia).

Para a reflexão que o filme propõe, duas são as linhas-mestras. A primeira é o trilho do trem como metáfora da vida, com suas curvas e perigos, mas sem interrupção. A segunda, mais perene na obra, refere-se à importância das origens sem olvidar os vínculos além do sangue. Não é difícil perceber que "Lion" vence a aposta.

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