terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Cinquenta Tons Mais Escuros -- Benevolência

AVISO PRELIMINAR: se você é fã incondicional da série "Cinquenta Tons", e não está disposto(a) a repensar ou ao menos refletir sobre a obra, melhor não perder tempo lendo esta crítica. O propósito aqui é estimular o raciocínio crítico, o que não se compatibiliza com ideias pré-concebidas e fanatismo. E também o presente texto não pode ser encarado como ataque pessoal, vez que se trata de uma análise impessoal.


De todos os mistérios da humanidade, um dos maiores é a atração que a saga "Cinquenta Tons" exerce sobre parcela do público. Existe um público-alvo, majoritariamente de mulheres maduras (leia-se, acima dos quarenta e cinco anos), conforme se depreende de rápidas pesquisas via web (por curiosidade, conferir aqui e aqui). Nos EUA, por exemplo, o livro já há alguns anos recebeu o rótulo de "mommy porn" (pornô para mamães), lógica aplicável também aos filmes, é claro - nesse caso, as fontes são The Guardian e The Telegraph (clique aqui e aqui para conferir). E isso explica muita coisa.

Trata-se de um perfil de espectador com características próprias, com uma demanda até então não atendida e que encontra no "romance" (sic) entre Christian e Anastasia um oásis em meio a, de um lado, um marasmo e, de outro, produções hardcore inaceitáveis. Isto é, são mulheres que se negam a recorrer a um verdadeiro filme pornográfico - por razões diversas, do freio moral imposto a si mesma ao inegável exagero (para não dizer surrealismo) das produções dessa área -, mas que também não se sentem plenas com os romances mainstream, que não têm a ardência que buscam. Até porque "Cinquenta Tons" lida com fetiches e temáticas proibidas onde nem mesmo a "revolução sexual" conseguiu penetrar. Dentro do que é socialmente aceito, há uma quebra de tabus, o que não seria ruim, não fosse a primeira parte (o campo da aceitação social). Surgindo como literatura, a seara da obra de E. L. James ainda estaria dentro da arte, logo, distante de um vexatório "O Doce Veneno do Escorpião". Ironicamente, um produto brasileiro com o mesmo viés, apenas mais inteligente e realista, é visto como imoral e censurável. Por que o livro de Raquel Pacheco (vulgo "Bruna Surfistinha") não é lido por esse público? Por que o filme com a Deborah Secco é censurado por essas mulheres? Qual a diferença entre obras como "Love" e "Ninfomaníaca" em relação a "Cinquenta Tons"? Por que uma cena de sexo explícito em "Aquarius" ratifica o estigma de que o cinema brasileiro repousa sob um leito luxurioso? 

A resposta é mais simples que parece: porque sexo vende, todavia, a exposição não pode ser crua e realista, carecendo de atenuantes pontuais. Uma história sobre uma prostituta é desconfortável pelo simples fato de ter uma profissional do sexo como protagonista. Essa noção de moralidade é bastante brasileira, mas não exclusividade tupiniquim. A pátria amada está distante do desprendimento dos holandeses, por exemplo, entretanto, o conservadorismo é um freio visivelmente prejudicial. Ora, imagine-se um casal heterossexual cisgênero, com idade na casa dos cinquenta anos, casados há, hipoteticamente, trinta anos. Francamente: quem assiste a vídeos de pornografia? Quem recebe esse tipo material por e-mail e/ou whatsapp? É evidente que toda regra possui exceção, mas não é difícil concluir que, estatisticamente, é o homem - aliás, estatisticamente, de cada quatro pessoas que buscam material desse tipo na internet, apenas uma é mulher (a fonte pode ser conferida aqui). Por honestidade intelectual, mister declarar a ressalva da fabilidade das estatísticas e principalmente da generalização. No entanto, fato é que mulheres maduras encontraram em "Cinquenta Tons" o soft porn que é elegante por ser soft e que satisfaz por ser porn. E qual o problema disso?

Novamente, uma resposta simples. Parte-se da premissa sociológica e antropológica de que tudo isso é resultado de imposições socioculturais. A mulher é orientada desde criança de que assistir a pornografia é errado, já o homem... nem tanto. Desviando dessa discussão infindável e retornando ao questionamento feito, aqui vai a resposta: "Cinquenta Tons" repete um modelo ideologicamente retrógrado cuja consequência pode ser uma perigosa manipulação de massas. "Um tapinha não dói". Isso porque E. L. James, com inteligência, molda um príncipe contemporâneo que o público-alvo sempre desejou em seu íntimo e que claramente se distancia do príncipe real. Jovem, bonito, bem-sucedido, elegante, rico e assim por diante. Praticamente sem defeitos. Com ainda mais sagacidade e para atenuar o defeito de Christian Grey, a explicação do seu distúrbio sexual-comportamental nasce de traumas de infância, clichê que a psicologia se cansou de explicar. Surge então um sentimento maternal segundo o qual Christian é um bom rapaz cujas falhas são resultado de sofrimentos infantis e lesões psicológicas não cicatrizadas, ou seja, ele não é ofensor, mas sim vítima que merece acolhimento. Ora, nessa lógica, um serial killer também poderia ser considerado vítima das circunstâncias, e há muita literatura que caminha nesse sentido. Mas não, a sociedade prefere impor a marginalização rocambolesca e impiedosa, no sentido do lamentável bordão "bandido bom é bandido morto" - que, por óbvio, não se aplica a um homem heterossexual cisgênero caucasiano rico como Christian Grey. Dito de outro modo: homem pobre que agride mulher comete crime (Lei Maria da Penha), Christian Grey é rico, então seus atos não configuram violência doméstica e sim sadomasoquismo resultante de sofrimentos pretéritos.

Nesse momento, o leitor deve se sentir ofendido e, principalmente, relutante ao absorver ideias defendidas por uma "ideologia 'de esquerda" - a mesma responsável pelo péssimo estado da nação. Novamente, uma discussão infindável. Cabe apenas um convite para a reflexão: se Grey é vítima das circunstâncias, a mesma lógica não absolveria os políticos corruptos, ou, mais ainda, os ladrões que encontram no crime a sobrevivência? A resposta mecânica é não, sem nem refletir, certo? Porém, é preferível pensar que o leitor aceita o convite, porque a lógica analógica não é nada absurda e tem embasamento criminológico. O argumento falacioso de que Grey é "um coitado" é raciocínio mecânico que deve ser evitado. Sim, E. L. James fez de seu protagonista uma pessoa com ferimentos de infância. Quem não os tem? Apenas por isso todos se tornam psicopatas? Pior, isso legitima a sua conduta? Só por ter traumas na infância Christian agride a namorada de maneira legítima? Logo ele, que, sabendo da própria condição, poderia procurar o melhor apoio profissional! Violência contra a mulher é desprezível, a mulher não nasceu para ser submissa e não deve ser objeto de posse senão de si própria. Se Christian Grey não pensa dessa forma é porque não quer. E se o público-alvo de "Cinquenta Tons" não enxerga da mesma forma é porque é inocente a nível tal que se torna incapaz de exercer senso crítico sobre a obra ou porque reproduz inconscientemente um discurso que não foge muito do que aprendeu desde os primeiros anos (de que a mulher deve obediência ao marido e assim por diante).

E QUANTO AO FILME?

Pois bem, CINQUENTA TONS MAIS ESCUROS é a continuação de "Cinquenta Tons de Cinza", filme famoso pela recepção calorosa no Framboesa de Ouro (premiação dos piores filmes da temporada, que se destacam por serem ruins). O destino do segundo capítulo não deve ser muito diferente.

O longa acompanha a reaproximação do casal recém-separado Christian Grey (Jamie Dornan) e Anastasia Steele (Dakota Johnson). No primeiro filme, o ricaço sadomasoquista assusta a moça (antes virgem!) com as práticas de BDSM, agora, porém, ele está disposto a mudar. Se com uma mulher mais velha ele tinha aprendido a f**** (melhor censurar o rico vocabulário do roteiro), com Anastasia ele aprendeu a amar (lindo, não?) - são essas as suas palavras, literalmente. É por isso que ele está disposto a fazer diferente.

Diferente uma ova: o discurso de Anastasia é de alguém que quer uma relação mais padrão (sem submissão, sem sanções, sem regras preestabelecidas em prejuízo dela, sem BDSM como imposição etc.), contudo, na prática, nada muda. Ou seja, o argumento cai por terra logo nos primeiros minutos, quando ela anuncia, de maneira suave, que sente prazer com a barba dele porque espeta a sua pele - aliás, que fala romântica! Mais adiante, ela diz, com todas as letras: "eu quero umas palmadas". Mas não era para ser diferente? Conclusão: o roteiro é contraditório. Se o que ela não quer é submissão, por que aceita a chantagem dele após a cena do salão ("vai andando ou vai carregada, mas vai")? Se ele está disposto a agir diferente, por que fala sempre no imperativo com ela (falas como "venha comigo", "seja minha" etc.)?

Claro, porque ele tem traumas de infância, certo? Nesse caso, com todo o dinheiro que tem, por que não buscou ajuda profissional? Não haveria um psicólogo ou psiquiatra capaz de ajudar o sofrido rapaz? Entrando no campo da especulação, ele não procurou porque se sente envergonhado da condição de vulnerabilidade. Então por que ela não sugere? Mesmo supondo que ele faça terapia - o que não aparece no filme, mas pode constar no livro -, ela é tão inócua quanto as tentativas do casal em "fazer diferente". Em verdade, Anastasia também deve ter problemas psicológicos, não apenas por se submeter a um relacionamento absurdamente abusivo mas também porque admite ser objeto de domínio e posse de um "macho alfa". Exemplo claro é a aceitação tácita da exposição de seu amigo José (Victor Rasuk), composta por retratos da moça, sem sua prévia autorização. Ou seja, sem nenhum problema, ela aceita que ele lucre com a sua imagem (sem contar a questão criminal pelo uso não autorizado da imagem alheia).

O texto prossegue com diálogos risíveis de tão estúpidos e estapafúrdios, inaceitáveis caso se tratasse de um relacionamento real. Exemplo: "Anastasia, quero jantar com você", "mas eu não quero mais nada com você", "aceite meu convite", "ok Christian, eu vou, mas apenas porque estou com fome". Que mulher diria isso para um ex e/ou interesse romântico!? São falas patéticas que envergonham qualquer ser dotado de inteligência (e disposto a prestar atenção no que é dito). Outro excerto de igual qualidade: "quero saber tudo de você", "minha mãe morreu quando eu tinha quatro anos, ela era viciada em crack". Que verticalização da história de vida de Mr. Grey, não!? Aliás, ela estranha a razão pela qual ele não teria revelado esse segredo, contudo, ele logo a corrige: "eu contei, mas você estava dormindo". Erro dela, portanto.

O roteiro é tão ruim que chega a ser engraçado, do tipo "isso não pode ser sério". Como não rir com "é preciso aprender a andar antes de correr"? Quando ela o leva a um mercado, ele recorda que sua última compra foi de um aeroporto. A advocacia do intocável Mr. Grey já diria: mas ele é rico, o que há de anormal nisso? Nada, desde que você considere que, falando isso, ele pretenderia, no mínimo, reafirmar sua própria riqueza para confirmar o domínio sobre Anastasia - sem contar a hipótese de humilhar a moça. Que mulher gostaria de ouvir isso? Defesa: qualquer uma, ser rico não é defeito. De fato, não é defeito, desde que isso seja natural e não um fator de exposição obsessiva. Dito de outra forma: ele precisa "jogar na cara dela" que ganha mais de vinte mil dólares a cada quinze minutos? Isso é mesmo necessário? Não seria reiteração de uma humilhação psicológica? É evidente que ele é um cretino, conclusão inviável apenas para quem repete bovinamente a falácia de que ele seria o homem perfeito.

Talvez Anastasia seja apenas burra, não psicologicamente frágil. Christian é rico e reitera isso milhares de vezes (para além do óbvio), ele então a convida para um baile. Qual a reação dela? Se preocupa com vestido e salão! Não haveria então um paradoxo? Se ele é rico, se ele a convida para um baile e se eles têm um relacionamento, não seria razoável concluir que ele resolveria esse tipo de problema? Melhor: burrice demonstra o roteiro, falho tanto no olhar micro quanto na macrovisão, com pérolas capazes de fazer Shakespeare se revirar no túmulo. Ou Robert Louis Stevenson, que tem sua obra dilapidada com a referência nada sutil em um dos vilões, Jack Hyde (Eric Johnson), homenagem vexatória à clássica obra "O Médico e o Monstro" (no original, "Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde", que pode ser traduzido como "O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde"). É verdade que Eric Johnson não é modelo de atuação (quem naquele elenco o é?), porém, sua transmutação de médico para monstro é tão repentina que não consegue ser minimamente verossímil. Indo além, os dois vilões são péssimos, até porque não existe narrativa no plot. Isso mesmo, o roteiro não tem narrativa: não existe avanço em relação ao primeiro capítulo, as coisas acontecem sem evolução alguma, numa tentativa falha de estudo de personagem (Grey). A outra vilã é Leila (Bella Heathcote), cuja psicopatologia é causada diretamente pelos abusos de Christian Grey (mas ele não seria vítima?). Com habilidades de causar inveja ao MacGyver, Leila está à altura do conjunto da obra. Que habilidades? São indescritíveis! O protagonista mora em uma casa de segurança melhor que qualquer outra edificação, mas é claro que ela consegue ultrapassar as barreiras do Forte Grey. Solução: dormir em um barco. E no dia seguinte? Ela deve ter desistido, a vida segue normalmente. Sim, isso mesmo: o script emite um suspense em potencial, caminha nesse sentido, mas o abandona em razão de... esquecimento? Leila some e reaparece quando cômodo para a pseudo-narrativa, o que a torna ainda pior (em termos narratológicos) que o perigoso Jack Hyde. É o tipo de personagem que se torna armadilha para o texto, que não sabe como solucionar.

A direção de James Foley compreende bem o ritmo a ser ditado pelo longa: o pior possível. É notório que, como produto final, "Cinquenta Tons" serve como mero pretexto para sexo e nudez. Desta vez, surpreendentemente, a atriz mostra mais o próprio corpo do que o ator, o que é pouco comum em Hollywood. Mas faz sentido, serve para evitar um desconforto das mommys. Foley domina o be-a-bá das produções de baixo nível, cometendo equívocos crassos como uso de farol (de carro) em direção à câmera logo após um plano escuro. No entanto, nada supera o elenco, um dos piores da história da sétima arte. Tudo começa com uma coadjuvante de luxo, um nome cujo quilate artístico seria irrefutável: Gretchen! Causa espanto a participação da esticada Gretchen no filme, espanto que se esvai nos créditos finais, quando se descobre que era, na verdade, Kim Basinger numa participação desonrosa. De todo modo, os holofotes ficam com os insuperáveis Jamie Dornan e Dakota Johnson, símbolos execráveis do que não deve ser feito em termos de atuação. Dornan é o perfeito galã canastrão, cujo desejo sexual insaciável cede espaço apenas para a expressão vazia. Agora, sua caracterização é com barba, já que ele está diferente (só que não). Dakota não fica atrás, a diferença é que ela parece ter noção da inabilidade interpretativa, razão pela qual esconde o rosto quando chora. Claro, se não sabe fazer a personagem chorar, melhor esconder e fingir o barulho do choro. Até porque a música "The Scientist" não pode ser onipresente para injetar dramaticidade, não é?

Para finalizar, se existe algo positivo em CINQUENTA TONS MAIS ESCUROS, certamente reside no cantor do baile, cujo canto é bastante satisfatório. Algo mais? Não, antes que a crítica fique pesada e elenque os defeitos mais graves do longa. Melhor encerrar com benevolência.

Um comentário: