quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

120 Batimentos por Minuto -- Humanidade englobada

Garantidamente, 120 BATIMENTOS POR MINUTO não é um filme para qualquer público, já que trata de questões que ainda são tabus (mesmo que sua história tenha ocorrido há quase trinta anos) e com uma abordagem bastante crua. Dito de uma maneira clara, não é um filme recomendável para a "família tradicional brasileira". Ideologicamente carregado e retratando o ativismo de uma causa que ainda é cercada por ignorância e preconceito - mas que ainda não deixou de ser um dos males contra os quais a humanidade luta -, o longa pode não agradar o cinéfilo de perfil conservador, o que, todavia, não lhe retira a grande qualidade. Nesse sentido, o Grand Prix recebido no Festival de Cannes 2017 deve ter algum significado, não é? (Foi também o indicado francês para o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro)

O mote da película é a árdua luta contra a AIDS na Paris da década de 1990. Como se vê, há um recorte espaço-temporal bastante específico, o que significaria, em tese, tratar-se de um filme datado. Porém, não é esse o caso, já que envolve um vírus ainda cientificamente misterioso e leigamente recheado de ignorância. Em síntese, pouco mudou desde então, ao menos comparando com o Brasil de 2018.

Embora não seja ruim, o roteiro é narratologicamente mal construído ao nascer com um plot principal, que morre em determinado momento para fazer de um subplot o novo plot principal. A sinopse oficial relata que Nathan é um recém-chegado ao grupo ativista Act Up Paris, dedicado à prevenção e ao tratamento da AIDS. Engajando-se à equipe e às suas atividades, o jovem logo se encanta com a dedicação de Sean, ativista mais experiente. É fácil perceber que existem duas personagens principais: de um lado, a Act Up Paris (e seus ativistas); de outro, o arco dramático de Nathan e Sean. A despeito de um pouco concomitantes em uma parte da película, chega um momento em que a Act Up Paris é completamente esquecida para que o foco fique nos dois - tornando-se um roteiro bastante clichê nessa parte, vale ressaltar -, havendo quase dois filmes em um, o que resulta também em um problema de duração do longa, que, com o perdão do trocadilho, fica demasiadamente longo. Essa não é a única produção recente que peca pelo alongamento excessivo (menos é mais!): meia hora a menos lhe faria bem.

Existe ainda subplots mal explicados, como o do estado de saúde de um dos ativistas (mencionado apenas em dois momentos, podendo, nesse caso, ser retirado sem perda substancial no produto final) e a inimizade gratuita entre Sean e o líder do grupo. Por outro lado, a proposta de reflexão quanto à metodologia de ativismo é pungente: diante da urgência, é melhor enfrentar as instituições inertes/passivas/lentas/contraproducentes através do diálogo ou da agressão verbal/física? A resposta óbvia é: o diálogo é a melhor solução, sempre. A questão, no entanto, é mais complexa, tendo em conta que existiam vidas em jogo e que, aparentemente, algumas entidades eram tão morosas que beiravam à indiferença. Na sociologia, algumas correntes apontam que a revolução social só ocorre através da luta. Ou seja, naquele caso específico, talvez tentar dialogar não fosse, de fato, o caminho ideal - o que não significa, tampouco, que as atitudes do grupo foram as melhores. A ideia é justamente pensar sobre isso.

O filme tem um elenco que consegue ser minimamente representativo: embora a maioria seja de homens, jovens, brancos e cisgêneros, existem no Act Up Paris também mulheres (uma delas mais madura), ao menos um negro, descendentes de árabes e ao menos uma transexual. É certamente a dupla Nahuel Perez Biscayart e Arnaud Valois que domina os holofotes: o primeiro é o enérgico Sean, cuja fragilidade é exposta aos poucos; o segundo é o introspectivo Nathan (que chega a levantar as mãos antes de se manifestar, enquanto os outros "se atropelam" sempre nas falas), de dedicação ímpar e beleza que chama a atenção dos colegas. Não se pode afirmar que existe uma química entre os dois porque, enquanto Sean é sempre apático, Nathan exibe carisma: nessa proposta, ambos vão muito bem.

O experiente cineasta Robin Campillo é indubitavelmente o autor da película, responsável pelo roteiro, pela direção e pela montagem. Na montagem, o uso dos raccords após as baladas é bastante inventivo e original, em especial na transição da balada para uma cena de sexo - é um momento delicado, lento e realista, não havendo um viés de soft porn desde que se olhe para o cinema enquanto expressão artística. Ainda sobre a montagem, a sequência final é brilhante nesse quesito. Há que se dizer que realismo é o que não falta ao longa, da sua nudez explícita em cenas de sexo e seus detalhes sexuais (por exemplo, o dilema uso de camisinha versus dificuldade de ereção durante a relação sexual) até a irresponsabilidade de algumas autoridades (como diretores de escolas) em relação à AIDS (que, ignorando a realidade, preferem não dar preservativos aos alunos adolescentes, com o argumento que isso estimularia a prática sexual, ignorando que, na realidade, eles já o fazem).

É necessário admitir que talvez Campillo tenha sido explícito em demasia, olvidando a arte da sugestão. Não que sexo e nudez sejam um problema, muito menos entre dois homens - afinal, existem incontáveis filmes mostrando sexo heterossexual e nudez feminina, o que nunca incomodou parcela do público. A questão é que o filme é feito inteiro para chocar, como em seu arrebatador desfecho. É verdade que até existem sutilezas - como um homem, em um trem, que se levanta e se afasta, fazendo expressão de desprezo, ao ver um casal gay se beijando (o que não é diferente no Brasil de 2018) -, mas, no geral, não há subtexto ou mensagens subliminares. Quando os manifestantes do Act Up Paris jogam um líquido que simula sangue em um de seus atos, sendo capturados pela polícia, o diretor coloca a cena em slow motion em alguns momentos, enfatizando o sangue e a queda durante a abordagem policial, fazendo aquilo parecer um massacre maior do que já é (quase uma abordagem sensacionalista. O sangue falso já era eloquente o suficiente.

Ressalte-se, contudo, a eficácia do filme em passar a sua mensagem, a despeito de uma ou outra opção equivocada - notadamente relativa à sua narrativa, à sua duração e ao exagero simbólico. O uso de narração intradiegética é um exemplo: quando Nathan e Sean compartilham suas experiências - o primeiro, ao falar de seu primeiro amor; o segundo, ao revelar como adquiriu o vírus -, o longa ganha em pessoalidade (em relação às personagens) e transmite histórias concretas sobre o tema principal. Outro exemplo é que, apesar de as personagens principais serem homossexuais, o longa não olvida a situação de pessoas que se contaminaram por outras vias (estariam em outros grupos), como os drogaditos, também defendidos pelo Act Up Paris.

"120 Batimentos por Minuto" não é um filme moralista, não é tradicional em nenhum sentido e tem um público provavelmente restrito. É um público que não vê problema em cenas de sexo entre dois homens, com um pouco de nudez entre eles. Um público que compreende que AIDS e homossexualidade não são sinônimos. E que percebe que o interesse na causa é social e despido de preconceitos e ressalvas. O "nada contra, mas..." fica descartado: só assim a humanidade fica englobada.

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