sábado, 6 de maio de 2017

A Autópsia -- Terror não precisa ser estúpido

O terror é um gênero que tem um público bastante fiel, porém, limitado. Isto é, são poucas as pessoas neutras em relação ao terror, que funciona como "ame-o ou deixe-o". Um argumento que milita em favor dos que não gostam do gênero é que, no geral, são filmes sem inteligência, mal elaborados (em especial no quesito roteiro) e desconfortáveis. Essa lógica será repetida neste texto, pois a lógica de A AUTÓPSIA é justamente a oposta.

Na trama, Tommy (Brian Cox) e Austin (Emile Hirsch) Tilden, pai e filho, trabalham em um necrotério em uma pequena cidade. A tranquilidade da sua rotina é abalada quando precisam analisar o corpo de uma mulher de identidade desconhecida, cujo corpo tem vestígios incomuns. Quanto mais eles investigam, mais coisas estranhas acontecem.

É perceptível que se trata de um roteiro original repleto de mistério, duas virtudes que servem como atrativo logo de início. Quem é a moça? Qual a razão da sua morte? Qual a relação entre a autópsia e os estranhos acontecimentos? O texto acerta ao manter sigilo quanto à revelação concernente ao mistério, isto é, ao invés de explicar os eventos paranormais já na metade do filme, aterrorizando o público (através das personagens) na outra metade, a obra prefere deixar tudo sem explicação durante mais tempo, sem olvidar o terror. E a revelação não decepciona, embora a facilidade com a qual as conclusões são tiradas seja incômoda - ou seja, a explicação é interessante e plausível (para um filme de terror, é claro), mas as personagens chegam a ela com muita rapidez. Também a contradição no desfecho desagrada, entretanto, isso tudo é apenas o encerramento do filme.

Por outro lado, apesar de ser um longa de terror, há uma fuga à simplicidade intelectual - ou seja, falta de conteúdo - que costuma prevalecer no gênero. Ao contrário dos demais, "A Autópsia" tem subplots realistas que combinam com o plot que, inicialmente, também é realista. O plot é o enredo de pai e filho que trabalham juntos no necrotério, empresa da família, este ajudando aquele. Brian Cox interpreta o pai tranquilo e carinhoso à distância, que permite que o filho se ausente do trabalho para sair com a namorada, não conseguindo se abrir sobre um trauma familiar que soa como um espírito que os assombra. Emile Hirsch vive o filho zeloso e preocupado, que não consegue deixar o pai trabalhando sozinho. Cox e Hirsch dão naturalidade à interação entre os dois, que são papéis estereotipados, mas coerentes para um filme de terror que representa uma cidade pequena e pacata. Tommy (Cox) é o médico respeitado e experiente, pai viúvo e aguardando passar a empresa para as mãos do filho. Austin (Hirsch) é o jovem apaixonado e inexperiente, ainda incerto quanto ao próprio futuro - tema que deveria ter sido aprofundado, ficando apenas na superfície - e com muito a aprender sobre o trabalho que exerce. Este, um namorado protetor, não querendo que sua namorada veja um cadáver. Aquele, um homem que vai ao cinema assistir a "Diário de uma Paixão" obrigado pela esposa, mas dorme nos primeiros cinco minutos. Personagens arquetípicas, condição aceitável, como dito, em se tratando das circunstâncias.

O que não é aceitável é o equívoco quanto ao clímax, que acaba sendo adiantado para um terceiro ato aquém do restante da obra, como já mencionado. Ainda assim, em se tratando de um filme de terror, a referência ao clássico "O Iluminado" provavelmente já serve de exemplo para demonstrar que a obra quer ser algo mais que um número na extensa lista de filmes de terror. É por isso que André Ovredal fez um ótimo trabalho na direção, melhor que a maioria dos longas do gênero. Sua obra é bastante realista e sem pudor nas cenas de autópsia, mostrando muito sangue, órgãos e, claro, nudez. Para pessoas que se incomodam com imagens como um corpo humano sendo cortado para a retirada dos seus pulmões, o filme não é indicado, pois isso aparece de maneira bastante convincente. Em se tratando de corpos mortos, o tratamento é ainda mais indelicado e brutal, com costelas sendo quebradas e crânio sendo aberto, por exemplo. Ironicamente, Ovredal atenua o impacto do realismo das cenas com rock: enquanto Tommy e Austin trabalham, gostam de ouvir rock, o que, em princípio, não combinaria com a cena, mas que é justamente a sua inteligência.

Sabendo que terror não vive apenas de jump scare - sim, o filme tem alguns jump scares, mas sem exagero -, a direção investe (e acerta em cheio) no poder de sugestão, reduzindo a visibilidade em alguns momentos. Em determinada cena, quando acaba a luz, uma personagem usa a luz do celular, fazendo com que o feixe de luz restrinja a visão do espectador e permita que a criatividade preencha o resto (além da expectativa). Luzes que se apagam não são novidade, mas também não são esperadas naquele contexto. Também há pouca visibilidade em uma cena com fumaça, em que as imagens são vultos. Nem tudo precisa ser mostrado, muitas vezes a sugestão é mais forte. Ademais, merece ser celebrada a espetacular direção de arte, que obrou com riqueza no local de trabalho da dupla, baseando-se no seguinte tripé: cores escuras (a iluminação restrita da fotografia as enaltece também), visual antigo e arquitetura labiríntica. Para as cenas-chave, de maior tensão, esse visual colaborou muito na sensação de aflição. Nos corredores foram colocados espelhos convexos, ideia genial porque dá naturalidade às cenas em que a câmera quer mostrar algo que uma personagem não presta atenção ou mesmo para dar um enfoque diferenciado.

A AUTÓPSIA não é o filme do ano, mas serve como exemplo de terror bem feito. Mais que isso, serve como prova de que terror não precisa ser estúpido, com um roteiro mal elaborado, uma direção preguiçosa e sustos incessantes e desnecessários (assustar por assustar não é fazer arte). Com mais exemplares assim, menos pessoas dirão "eu não gosto de terror".

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